A Ordem dos Peixes, uma tariqa sediada numa aldeia piscatória do sul do Irão, era assim chamada, porque o seu fundador, Parizad de Pasni, dizia que a alma humana deve ser como os olhos dos peixes que, por não terem pálpebras, estão sempre abertos. Todas as práticas ascéticas desta ordem se baseavam numa constante vigília, o zikhr, ou a recordação de Deus, acompanhada por uma permanente lembrança da morte e do presente, levadas a um extremo difícil de suportar, mas às quais os adeptos se entregavam com fervor e dedicação infinitos. Havia ainda outro motivo para a Ordem dos Peixes se denominar assim: o facto de os peixes nunca pararem de crescer, até morrerem. Isso era, para Parizad de Pasni, um excelente exemplo do modo como a sabedoria se vai alastrando pelo corpo, sem nunca parar de crescer. A sabedoria, dizia ele, é um peixe a crescer naalma. O corpo pode minguar, definhar, envelhecer, enfraquecer, mas a sabedoria não deve parar de crescer. Deve aumentar tanto o seu tamanho que não caberá na alma, transbordando e enchendo o mundo.
Na mesma altura, também durante o império Gaznévida, foi fundada a tariqa de Roozbeh, que era conhecida como a Irmandade dos Camarões, pois estes animais têm o coração na cabeça e isso, para Roozbeh, simbolizava uma união plena entre a razão e o sentimento. Os dervixes estudavam teologia e filosofia enquanto dançavam, e viviam uma espiritualidade em que cada acção emocional ou passional era acompanhada pela recitação dos textos da própria ordem, de poemas e, claro, do Alcorão e da Sunnah. A ordem valorizava a poesia acima de qualquer outra expressão, pois usavam-na como veículo filosófico, estético e passional.
O modo como cada uma destas confrarias vivia a religiosidade acabou por fazer aparecer, entre elas, uma rivalidade profunda. Parizad ridicularizava Roozbeh, dizendo que estes pensavam com o coração, enquanto Roozbeh se ria de Parizad por este nunca fechar os olhos e não perceber que o descanso e o sono também são maneiras de chegar a Deus. A disputa entre ambas as tariqas acentuou-se após a morte dos seus respectivos líderes e tornou-se absurdamente violenta ao ponto de morrerem, durante o século XI (411 depois da Hégira) centenas de dervixes de ambas as ordens, em circunstâncias atrozes.
A paz foi momentaneamente restaurada por Muqatil Al-Rashid, que mandou trazer à sua presença todos os dervixes das respectivas irmandades. Sentou-os a uma mesa e serviu peixes e camarões, cozidos, grelhados, com molhos, ao natural. Disse que era capaz de os comer a todos com a mesma voracidade, cuspindo cascas e espinhas. A mensagem de Muqatil al-Rashid foi compreendida e, durante algum tempo, houve paz entre as duas confrarias.
As rixas voltaram a surgir alguns meses depois de Muqatil al-Rashid ter abandonado a região. Primeiro com pequenas acusações de parte a parte, que rapidamente tomaram proporções absurdas. Actos de extrema violência voltaram a ser cometidos, numa voragem que culminou na morte de inúmeros religiosos, bem como leigos, mulheres e crianças. Muqatil Al-Rashid voltou a intervir. Mandou prender os dervixes e enforcá-los a todos. Nesse instante, logo após a sentença ser ouvida, um dos conselheiros de Muqatil al-Rashid pediu para falar. Estava horrorizado com a crueldade da decisão do soberano.
Disse, então, Muqatil al-Rashid:
— Pode um homem desejar algo mais do que ver as suas preces atendidas e o seu mais profundo desejo concretizado? Eu, ó vizir, não faço senão como Alá. Estes homens, mais do que tudo, desejam matar-se e eu proporciono-lhes a concretização desse desejo.
— Mas, ó rei, a bondade, muitas vezes, é negar aos homens os seus desejos. A generosidade de satisfazer a ambição dos outros, se for usada sem sabedoria, é apenas crueldade.
— Se os libertar, ó súbdito, matar- se-ão e arrastarão inocentes. A liberdade, se for usada sem sabedoria, é outra forma de crueldade. De ambas as maneiras, se os enforcar ou se os libertar, morrerão. Mas se for eu a fazê-lo a responsabilidade recairá sobre mim, em vez de recair sobre eles. E, quando Alá me julgar por isso, apontarei para as minhas costas. Contudo, seguirei o teu conselho, tendo a certeza de que o perdão poderá ser outra forma de matar.
Canto do Livro
Entre o pó e as traças de uma gaveta de livreiro
sexta-feira, dezembro 5
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Estou deitado na margem. Dois barcos, presos a um tronco de salgueiro cortado em remotos tempos, oscilam ao jeito do vento, não da corrente, que é macia, vagarosa, quase invisível. A paisagem em frente, conheço-a. Por uma aberta entre as árvores, vejo as terras lisas da lezíria, ao fundo uma franja de vegetação verde-escura, e depois, inevitavelmente, o céu onde boiam nuvens que só não são brancas porque a tarde chega ao fim e há o tom de pérola que é o dia que se extingue. Entretanto, o rio corre.
Três metros acima da minha cabeça estão presos nos ramos rolos de palha, canalhas de milho, aglomerados de lodo seco. São os vestígios da cheia. À esquerda, na outra margem, alinham-se os freixos que, a esta distância, por obra do vento que Ihes estremece as folhas numa vibração interminável, me fazem lembrar o interior de uma colmeia.
Entretanto, enquanto vou pensando, o rio continua a passar, em silêncio. Vem agora no vento, da aldeia que não está longe, um lamentoso toque de sinos: alguém morreu, sei quem foi, mas de que serve dizê-Io? Muito alto, duas garças brancas (ou talvez não sejam garças, não importa) desenham um bailado sem princípio nem fim: vieram inscrever-se no meu tempo, irão depois continuar o seu, sem mim.
Olho agora o rio que conheço tão bem. A cor das águas, a maneira como escorregam ao longo das margens, as espadanas verdes, as plataformas de limos onde encontram chão as rãs, onde as libélulas (também chamadas tira-olhos) pousam a extremidade das pequenas garras – este rio é qualquer coisa que me corre no sangue, a que estou preso desde sempre e para sempre. Naveguei nele, aprendi nele a nadar, conheço-lhe os fundões e as locas onde os barbos pairam imóveis. É mais do que um rio, é talvez um segredo.
E, contudo, estas águas já não são as minhas águas. O tempo flui nelas, arrasta-as e vai arrastando na corrente líquida, devagar, à velocidade (aqui, na terra) de sessenta segundos por minuto. Quantos minutos passaram já desde que me deitei na margem, sobre o feno seco e doirado? Quantos metros andou aquele tronco apodrecido que flutua? O sino ainda toca, a tarde teve agora um arrepio, as garças onde estão? Devagar, levanto-me, sacudo as palhas agarradas à roupa, calço-me. Apanho uma pedra, um seixo redondo e denso, lanço-o pelo ar, num gesto do passado. Cai no meio do rio, mergulha (não vejo, mas sei), atravessa as águas opacas, assenta no lodo do fundo, enterra-se um pouco.
Desço até à água, mergulho nela as mãos, e não as reconheço. Vêm-me da memória outras mãos mergulhadas noutro rio. As minhas mãos de há trinta anos, o rio antigo de águas que já se perderam no mar. Vejo passar o tempo. Tem a cor da água e vai carregado de detritos, de pétalas arrancadas de flores, de um toque vagaroso de sinos. Então uma ave cor de fogo passa como um relâmpago. O sino cala-se. E eu sacudo as mãos molhadas de tempo, levando-as até aos olhos – as minhas mãos de hoje, com que prendo a vida e a verdade desta hora.
José Saramago, "Deste mundo e do outro"
Três metros acima da minha cabeça estão presos nos ramos rolos de palha, canalhas de milho, aglomerados de lodo seco. São os vestígios da cheia. À esquerda, na outra margem, alinham-se os freixos que, a esta distância, por obra do vento que Ihes estremece as folhas numa vibração interminável, me fazem lembrar o interior de uma colmeia.
Entretanto, enquanto vou pensando, o rio continua a passar, em silêncio. Vem agora no vento, da aldeia que não está longe, um lamentoso toque de sinos: alguém morreu, sei quem foi, mas de que serve dizê-Io? Muito alto, duas garças brancas (ou talvez não sejam garças, não importa) desenham um bailado sem princípio nem fim: vieram inscrever-se no meu tempo, irão depois continuar o seu, sem mim.
Olho agora o rio que conheço tão bem. A cor das águas, a maneira como escorregam ao longo das margens, as espadanas verdes, as plataformas de limos onde encontram chão as rãs, onde as libélulas (também chamadas tira-olhos) pousam a extremidade das pequenas garras – este rio é qualquer coisa que me corre no sangue, a que estou preso desde sempre e para sempre. Naveguei nele, aprendi nele a nadar, conheço-lhe os fundões e as locas onde os barbos pairam imóveis. É mais do que um rio, é talvez um segredo.
E, contudo, estas águas já não são as minhas águas. O tempo flui nelas, arrasta-as e vai arrastando na corrente líquida, devagar, à velocidade (aqui, na terra) de sessenta segundos por minuto. Quantos minutos passaram já desde que me deitei na margem, sobre o feno seco e doirado? Quantos metros andou aquele tronco apodrecido que flutua? O sino ainda toca, a tarde teve agora um arrepio, as garças onde estão? Devagar, levanto-me, sacudo as palhas agarradas à roupa, calço-me. Apanho uma pedra, um seixo redondo e denso, lanço-o pelo ar, num gesto do passado. Cai no meio do rio, mergulha (não vejo, mas sei), atravessa as águas opacas, assenta no lodo do fundo, enterra-se um pouco.
Desço até à água, mergulho nela as mãos, e não as reconheço. Vêm-me da memória outras mãos mergulhadas noutro rio. As minhas mãos de há trinta anos, o rio antigo de águas que já se perderam no mar. Vejo passar o tempo. Tem a cor da água e vai carregado de detritos, de pétalas arrancadas de flores, de um toque vagaroso de sinos. Então uma ave cor de fogo passa como um relâmpago. O sino cala-se. E eu sacudo as mãos molhadas de tempo, levando-as até aos olhos – as minhas mãos de hoje, com que prendo a vida e a verdade desta hora.
José Saramago, "Deste mundo e do outro"
Rita Preta
Quando a chuva desabou severa numa manhã de outubro, e precipitou a imagem dos arrastados e das perdas que continuava a reverberar feroz em sua vida, Rita Preta não sabia que estava a poucos dias de ser levada outra vez, por uma corrente violenta, à vida que as mulheres de sua comunidade temiam ter.
Registrar as compras e ouvir o bipe da máquina escaneando o código de barras a trouxe para o presente. Então constata que anda exausta e enumera na mente as causas de seu cansaço: primeiro, a falta de paciência com Jorge. Ela é a amante — e essa palavra a deixa com um sentimento ambíguo difícil de definir, um estigma, sem dúvida, mas também lhe confere certa dose de excitação e liberdade. O que a abala são as promessas não cumpridas, os telefonemas não atendidos, as expectativas não correspondidas. Toda uma cadeia de pequenas frustrações. Além de passar muito tempo na estrada, viajando para transportar os grãos do oeste à baía, ele tem uma família que ocupa seu tempo: mulher, filhos, um neto. Prometera que sairiam para dançar em breve, mas havia meses os dois não iam à casa de seresta da Cidade Baixa. Além disso, a vida de encontros em hotéis baratos do centro da cidade sempre lhe soara humilhante e destituída de interesse.
Às vezes, Rita Preta tenta se conformar com seu destino, alegando que esta é sua sina. Confere um peso a essa história tendo como métrica seus relacionamentos anteriores. Ela tem muitos motivos para duvidar de seu atual romance. Foi assim com o pai de seu primeiro filho; com a transa breve que se seguiu e lhe deixou outro filho; com o delinquente, pai do terceiro, que a agredia e só deixou a casa quando ela trocou as fechaduras, e depois de lhe comprar uma passagem de ônibus de ida, sem volta, para o cafundó de onde ele tinha saído.
Itamar Vieira Junior, "Coração sem Medo"
Às vezes, Rita Preta tenta se conformar com seu destino, alegando que esta é sua sina. Confere um peso a essa história tendo como métrica seus relacionamentos anteriores. Ela tem muitos motivos para duvidar de seu atual romance. Foi assim com o pai de seu primeiro filho; com a transa breve que se seguiu e lhe deixou outro filho; com o delinquente, pai do terceiro, que a agredia e só deixou a casa quando ela trocou as fechaduras, e depois de lhe comprar uma passagem de ônibus de ida, sem volta, para o cafundó de onde ele tinha saído.
Itamar Vieira Junior, "Coração sem Medo"
quinta-feira, dezembro 4
Apocalipse de Solentiname
Os ticos são sempre assim, quietinhos mas cheios de surpresas, a gente chega em São José da Costa Rica e aí estão esperando Carmen Naranjo e Samuel Rovinski e Sergio Ramírez (que é da Nicarágua e não tico mas que diferença no fundo se dá no mesmo, que diferença há que eu seja argentino embora por gentileza deveria dizer tino, e os outros nicas ou ticos). Fazia um desses calores e, o que era pior, tudo começava em seguida, entrevista à imprensa com as coisas de sempre, por que não vive em sua pátria, que houve com Blow-Up que era tão diferente de seu conto, você acha que o escritor tem de estar engajado? A essa altura já sei que me farão a última entrevista nas portas do inferno e não tenho dúvida de que farão as mesmas perguntas, e se por acaso for chez São Pedro a coisa não vai mudar, você não acha que lá embaixo escrevia hermético demais para o povo?
Chegamos a Solentiname entrada a noite, lá esperavam Teresa e William e um poeta gringo e os outros rapazes da comunidade; fomos dormir quase em seguida, antes, porém, vi as pinturas em um canto, Ernesto falava com sua gente e tirava de uma bolsa as provisões e presentes que trazia de São José, alguém dormia em uma rede e eu vi as pinturas em um canto, comecei a olhá-las. Não me lembro quem foi que me explicou que eram trabalhos dos camponeses da zona, este é do Vicente, este é da Ramona, alguns assinados e outros não, mas todos tão belos, uma vez mais a visão primeira do mundo, o puro olhar de quem descreve o seu arredor como um canto de louvor: vaquinhas anãs em prados de amapola, a choça de açúcar de onde vai saindo gente como formiga, o cavalo de olhos verdes em um fundo de canaviais, o batismo em uma igreja que não acredita na perspectiva e sobe ou cai sobre si mesma, o lago com botezinhos feito sapatos e em último plano um peixe enorme que ri com lábios de cor turquesa. Ernesto, então, veio explicar-me que a venda das pinturas ajudava a levar a vida, pela manhã me mostraria trabalhos em madeira e pedra dos camponeses e também, suas próprias esculturas; sentíamos muito sono mas eu continuei espiando os quadrinhos amontoados em um canto, separando a grande confusão de telas com as vaquinhas e as flores e essa mãe com dois filhos nos joelhos, um de branco e o outro de vermelho, sob um céu tão cheio de estrelas que a única nuvem ficava como que humilhada em um ângulo, apertando-se contra a moldura do quadro, escapando da tela de puro medo.
Era domingo o outro dia e missa das onze, a missa de Solentiname, na qual os camponeses e Ernesto e os amigos de visita comentam juntos trechos do evangelho que nesse dia era o da prisão de Cristo no horto, um tema que a gente de Solentiname tratava como se falasse de si mesma, da ameaça de que lhes sobreviesse, à noite ou em pleno dia, essa vida de permanente intranquilidade das ilhas e da terra firme e de toda Nicarágua e não somente de toda Nicarágua senão de quase toda América Latina, vida rodeada de medo e morte, vida da Guatemala e vida de El Salvador, vida da Argentina e da Bolívia, vida do Chile e de Santo Domingo, vida do Paraguai, vida do Brasil e da Colômbia.
Logo depois tivemos de pensar em voltar e foi então que pensei de novo nos quadros, fui à sala da comunidade e comecei a olhá-los à luz delirante do meio-dia, as cores mais vivas, os acrílicos ou os óleos confrontando-se, eram cavalinhos e girassóis e festas nos campos e simétricos palmeirais. Lembrei-me que tinha um filme colorido na máquina e sai ao terraço com uma braçada de quadros; Sergio que chegava ajudou-me e mantemos de pé na boa luz, e de um em um eu os fui fotografando com cuidado, para que cada quadro ocupasse inteiramente o visor. São assim os acasos: me sobravam tantas fotografias quanto quadros, nenhum deixou de ser fotografado, e quando Ernesto chegou para nos dizer que a panga estava pronta contei-lhe o que tinha feito e ele riu, ladrão de quadros, contrabandista de imagens. Sim, disse-lhe, eu os levo todos, lá os projetarei em minha tela e serão, maiores e mais brilhantes que estes, dane-se.
Voltei a São José, estive em Havana e andei por aí fazendo coisas, de volta à Paris com um cansaço cheio de saudade, Claudine quietinha, esperando-me em Orly, outra vez a vida de relógio no pulso e merci monsieur, bonjour madame, os comitês, os cinemas, o vinho tinto e Claudine, os quartetos de Mozart e Claudine. Entre tanta coisa que as gordas malas tinham cuspido sobre a cama e o tapete, revistas, recortes, lenços e livros de poetas centro-americanos, os tubos de plástico cinzento com os rolos de filme, tanta coisa ao longo dos meses, a sequência da Escola Lenin de Havana, as ruas de Trinidad, os perfis do vulcão Irazú e seu depósito de água fervente e verde, onde Samuel e eu e Sarinha tínhamos imaginado patos assados flutuando entre gases de fumaça de enxofre. Claudine levou os rolos para revelar, uma tarde andando pelo Quartier Latin eu me lembrei e como tinha a nota no bolso os recolhi, eram oito, pensei logo nos quadrinhos de Solentiname e em casa procurei nas caixas e fui olhando o primeiro diapositivo de cada série, me lembrava que antes dos quadrinhos fotografara a missa de Ernesto, umas crianças brincando entre as palmeiras iguaizinhas às pinturas, crianças e palmeiras e vacas sobre um fundo violentamente azul de céu e de lago apenas um pouco mais verde, ou talvez ao contrário, já não sabia direito. Pus no aparelho a caixa das crianças e da missa, sabia que depois começavam as pinturas até o final do rolo.
Anoitecia e eu estava sozinho, Claudine viria ao sair do trabalho para ouvir música e ficar comigo; preparei a tela e um rum com muito gelo, o projetor com seu carregador pronto e seu botão de telecomando; não preciso correr as cortinas, a noite serviçal já estava ali acendendo as lâmpadas e o perfume do rum; era bom pensar que tudo voltaria a acontecer pouco a pouco, depois dos quadrinhos de Solentiname começaria a passar as caixas com as imagens cubanas, mas por que os quadrinhos primeiro, por que a deformação profissional, a arte antes que a vida, mas por que não, disse a outra a esta em seu eterno indesarmável diálogo fraterno e rancoroso, por que não olhar primeiro as pinturas de Solentiname se também são a vida, se tudo é a mesma coisa?
Passaram as imagens da missa, ruins por erros de exposição, as crianças, em compensação, brincavam em plena luz e dentes muito brancos. Apertava sem vontade o botão, teria ficado tanto tempo olhando cada uma daquelas imagens pegajosas de lembranças, pequeno mundo frágil de Solentiname cercado de água e de esbirros assim como estava cercado o rapaz que olhei sem compreender, eu tinha apertado o botão e o rapaz estava ali em um segundo plano claríssimo, uma cara larga e limpa, cheia de incrédula surpresa, enquanto seu corpo se dobrava para a frente, o buraco nítido no meio da testa, o revólver do oficial marcando ainda a trajetória da bala, dos lados, os outros, com as metralhadoras, um fundo confuso de casas e árvores.
Pense-se o que se quiser, isso sempre chega antes de nós mesmo e nos deixa muito para trás; estupidamente me disse que tinha havido engano na ótica, que me deram imagens de outro cliente, mas então a missa, as crianças brincando no campo, e então? Minha mão também não obedecia quando apertou o botão, e foi um salitral interminável ao meio-dia com dois ou três telheiros de chapas enferrujadas, gente amontoada a esquerda olhando os corpos estendidos de costas, os braços abertos contra um céu nu e cinzento; era preciso prestar muita atenção para distinguir no fundo o grupo fardado de costas e se afastando, o jipe que esperava no alto de uma ladeira.
Sei que continuei; para enfrentar isso que resistia a toda prudência a única coisa possível era continuar apertando o botão, olhando a esquina de Corrientes e San Martín e o carro negro com os quatro sujeitos apontando para a calçada onde alguém corria com uma camisa branca e sandálias, duas mulheres querendo se refugiar atrás de um caminhão estacionado, alguém olhando de frente, uma cara de incredulidade horrorizada, levando a mão ao queixo como que para se tocar e se sentir ainda vivo, e de repente o aposento quase às escuras, uma luz suja caindo da alta janela gradeada, a mesa com a moça nua e de costas, o cabelo desabado até o chão, a sombra de costas enfiando nela um cabo entre as pernas abertas, os dois sujeitos de frente conversando, uma gravata azul e um pulôver verde. Nunca soube se continuava apertando ou não o botão, vi uma clareira de selva, uma cabana com teto de palha e árvores em primeiro plano, contra o tronco da mais próxima um rapaz magro olhando para a esquerda onde um grupo confuso, cinco ou seis muito juntos, apontava com fuzis e revólveres; o rapaz de cara larga e uma mecha caindo-lhe na testa morena olhava-os, uma mão levantada, a outra talvez no bolso da calça, era como se estivesse lhes dizendo algo sem pressa, quase displicentemente, e embora a fotografia fosse ruim eu senti e soube e vi que o rapaz era Roque Dalton, e então sim, apertei o botão como se com isso pudesse salvá-lo da infâmia dessa morte e pude ver um carro que voava em pedaços em pleno centro de uma cidade que podia ser Buenos Aires ou São Paulo, continuei apertando e apertando entre rajadas de caras ensanguentadas e pedaços de corpos e correrias de mulheres e crianças por uma ladeira boliviana ou guatemalteca, de súbito a tela se encheu de mercúrio, e de nada e também de Claudine que entrava silenciosa derramando sua sombra na tela antes de se inclinar e me beijar no cabelo e perguntar se eram lindas, se estava contente com as fotografias, se queria mostrar a ela.
Acionei o carregador e voltei a colocá-lo em zero, uma pessoa não sabe como nem por que faz as coisas quando ultrapassou um limite que também desconhece. Sem olhar para ela, porque teria compreendido ou simplesmente tido medo disso que devia ser a minha cara, sem lhe explicar nada porque tudo era um só no da garganta as unhas dos pés, me levantei e devagar sentei-a em minha poltrona e algo devo ter dito, que buscaria uma bebida para ela e que olhasse, que olhasse enquanto ia lhe buscar uma bebida. No banheiro, acho que vomitei, ou só chorei e depois vomitei ou não fiz nada e apenas fiquei sentado na beira da banheira deixando o tempo passar até que pude ir a cozinha e preparar para Claudine sua bebida preferida, enchê-la de gelo e então sentir o silêncio, perceber que Claudine não gritava nem vinha correndo para me interrogar, o silêncio nada mais e, por momentos, o bolero açucarado que se filtrava do apartamento ao lado. Não sei quanto demorei para percorrer o caminho da cozinha à sala, ver a parte traseira da tela bem quando ela chegava ao final da série e a peça ficava tomada pelo reflexo do mercúrio instantâneo e depois a penumbra, Claudine apagando o projetor e soltando-se na poltrona para beber e me sorrir devagarinho, feliz e gata e tão contente.
— Como ficaram bonitas aquelas do peixe que ri e da mãe com os dois filhos e as vaquinhas no campo; espere, e aquela outra do batismo na igreja, me diga quem os pintou, não se vê as assinaturas.
Sentado no chão, sem olhar para ela, procurei meu copo e o bebi de um gole. Não lhe diria nada, que lhe podia dizer agora, me lembro, porém, que pensei vagamente em lhe perguntar uma idiotice qualquer, perguntar-lhe se em algum momento não tinha visto uma fotografia de Napoleão a cavalo. Mas não lhe perguntei, claro.
Julio Cortázar, "Alguém que anda por aí"
Depois o Hotel Europa e essa ducha que coroa as viagens com um longo monólogo de sabão e silêncio. Só que às sete, quando já era hora de caminhar por São José e ver se era simples e igualzinho como me tinham dito, uma mão me puxou pelo paletó e atrás estava Ernesto Cardenal e que abraço, poeta, que bom que estivesse aí depois do encontro em Roma, de tantos encontros sobre o papel ao longo dos anos. Sempre me surpreende, sempre me comove que alguém como Ernesto venha me ver e me procurar, você dirá que ardo de falsa modéstia, mas diga logo, velho, os cães ladram, a caravana passa, serei sempre um aficcionado, alguém que de baixo ama muito a alguns que um dia acontece que também o amam são coisas que estão acima de mim, melhor que passemos a outra linha.
A outra linha era que Ernesto sabia que eu chegava a Costa Rica e olhe só, viera voando de sua ilha porque o passarinho que lhe leva as notícias o informara que os ticos planejavam para mim uma viagem a Solentiname e ele achou irresistível a ideia de vir me buscar, com o que, dois dias depois, Sergio e Óscar e Ernesto e eu abarrotávamos a facilmente abarrotável capacidade de um Piper Aztec, cujo nome será sempre um enigma para mim, mas que voava entre soluços e borborigmos detestáveis enquanto o loiro piloto sintonizava uns calipsos de oposição e parecia completamente indiferente à minha noção de que o asteca nos levava direto à pirâmide do sacrifício. Não foi assim, como se pôde ver, descemos em Los Chiles e daí um jipe igualmente cambaleante nos pôs na fazenda do poeta José Coronel Urteche, que faria bem a muita gente ler e em cuja casa descansamos, falando de tantos outros amigos poetas, de Roque Dalton e Gertrude Stein e de Carlos Martínez Rivas até que Luis Coronel chegou e fomos para a Nicarágua em seu jipe e sua panga de sobressaltadas velocidades. Antes, porém, tiramos fotografias de lembrança com uma dessas máquinas que fazem sair na hora um papelzinho azul que pouco a pouco e maravilhosamente e polaroid vai se enchendo de imagens paulatinas, primeiro ectoplasmas inquietantes e pouco a pouco um nariz, um cabelo crespo, o sorriso de Ernesto com sua barba nazarena, Dona María e Dom José destacando-se com o terraço ao fundo. Todos achavam isso muito normal porque já estavam habituados a servir-se dessa máquina, mas eu não, para mim, ver sair do nada, do quadradinho azul do nada esses rostos e esses sorrisos de despedida me enchia de espanto e lhes disse isso, lembro-me de ter perguntado a Óscar o que aconteceria se alguma vez, depois de uma foto de família, o papelzinho azul do nada começasse a se encher com Napoleão a cavalo, e a gargalhada de Dom José Coronel, que tudo ouvia como sempre, o jipe, vamos logo para o lago.
Chegamos a Solentiname entrada a noite, lá esperavam Teresa e William e um poeta gringo e os outros rapazes da comunidade; fomos dormir quase em seguida, antes, porém, vi as pinturas em um canto, Ernesto falava com sua gente e tirava de uma bolsa as provisões e presentes que trazia de São José, alguém dormia em uma rede e eu vi as pinturas em um canto, comecei a olhá-las. Não me lembro quem foi que me explicou que eram trabalhos dos camponeses da zona, este é do Vicente, este é da Ramona, alguns assinados e outros não, mas todos tão belos, uma vez mais a visão primeira do mundo, o puro olhar de quem descreve o seu arredor como um canto de louvor: vaquinhas anãs em prados de amapola, a choça de açúcar de onde vai saindo gente como formiga, o cavalo de olhos verdes em um fundo de canaviais, o batismo em uma igreja que não acredita na perspectiva e sobe ou cai sobre si mesma, o lago com botezinhos feito sapatos e em último plano um peixe enorme que ri com lábios de cor turquesa. Ernesto, então, veio explicar-me que a venda das pinturas ajudava a levar a vida, pela manhã me mostraria trabalhos em madeira e pedra dos camponeses e também, suas próprias esculturas; sentíamos muito sono mas eu continuei espiando os quadrinhos amontoados em um canto, separando a grande confusão de telas com as vaquinhas e as flores e essa mãe com dois filhos nos joelhos, um de branco e o outro de vermelho, sob um céu tão cheio de estrelas que a única nuvem ficava como que humilhada em um ângulo, apertando-se contra a moldura do quadro, escapando da tela de puro medo.
Era domingo o outro dia e missa das onze, a missa de Solentiname, na qual os camponeses e Ernesto e os amigos de visita comentam juntos trechos do evangelho que nesse dia era o da prisão de Cristo no horto, um tema que a gente de Solentiname tratava como se falasse de si mesma, da ameaça de que lhes sobreviesse, à noite ou em pleno dia, essa vida de permanente intranquilidade das ilhas e da terra firme e de toda Nicarágua e não somente de toda Nicarágua senão de quase toda América Latina, vida rodeada de medo e morte, vida da Guatemala e vida de El Salvador, vida da Argentina e da Bolívia, vida do Chile e de Santo Domingo, vida do Paraguai, vida do Brasil e da Colômbia.
Logo depois tivemos de pensar em voltar e foi então que pensei de novo nos quadros, fui à sala da comunidade e comecei a olhá-los à luz delirante do meio-dia, as cores mais vivas, os acrílicos ou os óleos confrontando-se, eram cavalinhos e girassóis e festas nos campos e simétricos palmeirais. Lembrei-me que tinha um filme colorido na máquina e sai ao terraço com uma braçada de quadros; Sergio que chegava ajudou-me e mantemos de pé na boa luz, e de um em um eu os fui fotografando com cuidado, para que cada quadro ocupasse inteiramente o visor. São assim os acasos: me sobravam tantas fotografias quanto quadros, nenhum deixou de ser fotografado, e quando Ernesto chegou para nos dizer que a panga estava pronta contei-lhe o que tinha feito e ele riu, ladrão de quadros, contrabandista de imagens. Sim, disse-lhe, eu os levo todos, lá os projetarei em minha tela e serão, maiores e mais brilhantes que estes, dane-se.
Voltei a São José, estive em Havana e andei por aí fazendo coisas, de volta à Paris com um cansaço cheio de saudade, Claudine quietinha, esperando-me em Orly, outra vez a vida de relógio no pulso e merci monsieur, bonjour madame, os comitês, os cinemas, o vinho tinto e Claudine, os quartetos de Mozart e Claudine. Entre tanta coisa que as gordas malas tinham cuspido sobre a cama e o tapete, revistas, recortes, lenços e livros de poetas centro-americanos, os tubos de plástico cinzento com os rolos de filme, tanta coisa ao longo dos meses, a sequência da Escola Lenin de Havana, as ruas de Trinidad, os perfis do vulcão Irazú e seu depósito de água fervente e verde, onde Samuel e eu e Sarinha tínhamos imaginado patos assados flutuando entre gases de fumaça de enxofre. Claudine levou os rolos para revelar, uma tarde andando pelo Quartier Latin eu me lembrei e como tinha a nota no bolso os recolhi, eram oito, pensei logo nos quadrinhos de Solentiname e em casa procurei nas caixas e fui olhando o primeiro diapositivo de cada série, me lembrava que antes dos quadrinhos fotografara a missa de Ernesto, umas crianças brincando entre as palmeiras iguaizinhas às pinturas, crianças e palmeiras e vacas sobre um fundo violentamente azul de céu e de lago apenas um pouco mais verde, ou talvez ao contrário, já não sabia direito. Pus no aparelho a caixa das crianças e da missa, sabia que depois começavam as pinturas até o final do rolo.
Anoitecia e eu estava sozinho, Claudine viria ao sair do trabalho para ouvir música e ficar comigo; preparei a tela e um rum com muito gelo, o projetor com seu carregador pronto e seu botão de telecomando; não preciso correr as cortinas, a noite serviçal já estava ali acendendo as lâmpadas e o perfume do rum; era bom pensar que tudo voltaria a acontecer pouco a pouco, depois dos quadrinhos de Solentiname começaria a passar as caixas com as imagens cubanas, mas por que os quadrinhos primeiro, por que a deformação profissional, a arte antes que a vida, mas por que não, disse a outra a esta em seu eterno indesarmável diálogo fraterno e rancoroso, por que não olhar primeiro as pinturas de Solentiname se também são a vida, se tudo é a mesma coisa?
Passaram as imagens da missa, ruins por erros de exposição, as crianças, em compensação, brincavam em plena luz e dentes muito brancos. Apertava sem vontade o botão, teria ficado tanto tempo olhando cada uma daquelas imagens pegajosas de lembranças, pequeno mundo frágil de Solentiname cercado de água e de esbirros assim como estava cercado o rapaz que olhei sem compreender, eu tinha apertado o botão e o rapaz estava ali em um segundo plano claríssimo, uma cara larga e limpa, cheia de incrédula surpresa, enquanto seu corpo se dobrava para a frente, o buraco nítido no meio da testa, o revólver do oficial marcando ainda a trajetória da bala, dos lados, os outros, com as metralhadoras, um fundo confuso de casas e árvores.
Pense-se o que se quiser, isso sempre chega antes de nós mesmo e nos deixa muito para trás; estupidamente me disse que tinha havido engano na ótica, que me deram imagens de outro cliente, mas então a missa, as crianças brincando no campo, e então? Minha mão também não obedecia quando apertou o botão, e foi um salitral interminável ao meio-dia com dois ou três telheiros de chapas enferrujadas, gente amontoada a esquerda olhando os corpos estendidos de costas, os braços abertos contra um céu nu e cinzento; era preciso prestar muita atenção para distinguir no fundo o grupo fardado de costas e se afastando, o jipe que esperava no alto de uma ladeira.
Sei que continuei; para enfrentar isso que resistia a toda prudência a única coisa possível era continuar apertando o botão, olhando a esquina de Corrientes e San Martín e o carro negro com os quatro sujeitos apontando para a calçada onde alguém corria com uma camisa branca e sandálias, duas mulheres querendo se refugiar atrás de um caminhão estacionado, alguém olhando de frente, uma cara de incredulidade horrorizada, levando a mão ao queixo como que para se tocar e se sentir ainda vivo, e de repente o aposento quase às escuras, uma luz suja caindo da alta janela gradeada, a mesa com a moça nua e de costas, o cabelo desabado até o chão, a sombra de costas enfiando nela um cabo entre as pernas abertas, os dois sujeitos de frente conversando, uma gravata azul e um pulôver verde. Nunca soube se continuava apertando ou não o botão, vi uma clareira de selva, uma cabana com teto de palha e árvores em primeiro plano, contra o tronco da mais próxima um rapaz magro olhando para a esquerda onde um grupo confuso, cinco ou seis muito juntos, apontava com fuzis e revólveres; o rapaz de cara larga e uma mecha caindo-lhe na testa morena olhava-os, uma mão levantada, a outra talvez no bolso da calça, era como se estivesse lhes dizendo algo sem pressa, quase displicentemente, e embora a fotografia fosse ruim eu senti e soube e vi que o rapaz era Roque Dalton, e então sim, apertei o botão como se com isso pudesse salvá-lo da infâmia dessa morte e pude ver um carro que voava em pedaços em pleno centro de uma cidade que podia ser Buenos Aires ou São Paulo, continuei apertando e apertando entre rajadas de caras ensanguentadas e pedaços de corpos e correrias de mulheres e crianças por uma ladeira boliviana ou guatemalteca, de súbito a tela se encheu de mercúrio, e de nada e também de Claudine que entrava silenciosa derramando sua sombra na tela antes de se inclinar e me beijar no cabelo e perguntar se eram lindas, se estava contente com as fotografias, se queria mostrar a ela.
Acionei o carregador e voltei a colocá-lo em zero, uma pessoa não sabe como nem por que faz as coisas quando ultrapassou um limite que também desconhece. Sem olhar para ela, porque teria compreendido ou simplesmente tido medo disso que devia ser a minha cara, sem lhe explicar nada porque tudo era um só no da garganta as unhas dos pés, me levantei e devagar sentei-a em minha poltrona e algo devo ter dito, que buscaria uma bebida para ela e que olhasse, que olhasse enquanto ia lhe buscar uma bebida. No banheiro, acho que vomitei, ou só chorei e depois vomitei ou não fiz nada e apenas fiquei sentado na beira da banheira deixando o tempo passar até que pude ir a cozinha e preparar para Claudine sua bebida preferida, enchê-la de gelo e então sentir o silêncio, perceber que Claudine não gritava nem vinha correndo para me interrogar, o silêncio nada mais e, por momentos, o bolero açucarado que se filtrava do apartamento ao lado. Não sei quanto demorei para percorrer o caminho da cozinha à sala, ver a parte traseira da tela bem quando ela chegava ao final da série e a peça ficava tomada pelo reflexo do mercúrio instantâneo e depois a penumbra, Claudine apagando o projetor e soltando-se na poltrona para beber e me sorrir devagarinho, feliz e gata e tão contente.
— Como ficaram bonitas aquelas do peixe que ri e da mãe com os dois filhos e as vaquinhas no campo; espere, e aquela outra do batismo na igreja, me diga quem os pintou, não se vê as assinaturas.
Sentado no chão, sem olhar para ela, procurei meu copo e o bebi de um gole. Não lhe diria nada, que lhe podia dizer agora, me lembro, porém, que pensei vagamente em lhe perguntar uma idiotice qualquer, perguntar-lhe se em algum momento não tinha visto uma fotografia de Napoleão a cavalo. Mas não lhe perguntei, claro.
Julio Cortázar, "Alguém que anda por aí"
E não sobrará ninguém!
As primeiras notícias davam conta
De que uma doença nova havia aparecido na China.
Mas como não sou chinês, não me importei,
Até porque não se deve esperar nada
Mesmo de bom vindo da China.
Depois, disseram que a doença chegara à Itália,
Mas como não sou italiano, e da Itália conheço apenas
O macarrão, a polenta e o tiramissu,
Não disse nada, porque afinal de contas
A Itália está lá longe, do outro lado do Oceano.
Quando a doença chegou ao Brasil,
O nosso Guia falou que era apenas uma gripezinha
Eu confiei, ele havia sido eleito por 58 milhões
De pessoas, fora outras 42 milhões que se omitiram,
E então eu toquei a vida, como nada tivesse acontecendo.
Depois começaram a aparecer notícias
De pessoas vagamente conhecidas que estavam morrendo
É o que diziam, mas eram pessoas tão vagamente conhecidas
E que já estavam velhas e doentes, e que iriam morrer
De qualquer jeito mesmo, e eu não disse nada.
Ai o pai de um amigo meu morreu, e ele disse
Que a doença parecia coisa séria, mas como esse meu amigo
Sempre foi meio esquisito, diziam até que era comunista,
Achei que ele no fundo queria apenas prejudicar
O bom andamento do governo, e não disse nada.
Não disse nada quando a doença matou meu pai
E dois dias depois levou minha mãe, porque eu saí
Para uma festa com amigos, a vida tinha urgência,
Pois sou jovem, bonito e forte, e não posso ficar
Sentado feito besta esperando os dias passarem.
Hoje estou aqui sozinho, sem conseguir respirar,
Deitado na cama da minha casa, porque os hospitais
Já não têm leito. E sei que, como não disse nada,
Ninguém vai protestar por mim e amanhã serei
Apenas mais um número na estatística das mortes diárias.
Luiz Ruffato
Este texto, querido (a) leitor (a), é uma pobre paráfrase de outro, famoso, que a internet ora diz que é de Brecht, ora de Maiakovski, mas que na verdade é do teólogo protestante alemão Martin Niemöller (1892-1984).
De que uma doença nova havia aparecido na China.
Mas como não sou chinês, não me importei,
Até porque não se deve esperar nada
Mesmo de bom vindo da China.
Depois, disseram que a doença chegara à Itália,
Mas como não sou italiano, e da Itália conheço apenas
O macarrão, a polenta e o tiramissu,
Não disse nada, porque afinal de contas
A Itália está lá longe, do outro lado do Oceano.
Quando a doença chegou ao Brasil,
O nosso Guia falou que era apenas uma gripezinha
Eu confiei, ele havia sido eleito por 58 milhões
De pessoas, fora outras 42 milhões que se omitiram,
E então eu toquei a vida, como nada tivesse acontecendo.
Depois começaram a aparecer notícias
De pessoas vagamente conhecidas que estavam morrendo
É o que diziam, mas eram pessoas tão vagamente conhecidas
E que já estavam velhas e doentes, e que iriam morrer
De qualquer jeito mesmo, e eu não disse nada.
Ai o pai de um amigo meu morreu, e ele disse
Que a doença parecia coisa séria, mas como esse meu amigo
Sempre foi meio esquisito, diziam até que era comunista,
Achei que ele no fundo queria apenas prejudicar
O bom andamento do governo, e não disse nada.
Não disse nada quando a doença matou meu pai
E dois dias depois levou minha mãe, porque eu saí
Para uma festa com amigos, a vida tinha urgência,
Pois sou jovem, bonito e forte, e não posso ficar
Sentado feito besta esperando os dias passarem.
Hoje estou aqui sozinho, sem conseguir respirar,
Deitado na cama da minha casa, porque os hospitais
Já não têm leito. E sei que, como não disse nada,
Ninguém vai protestar por mim e amanhã serei
Apenas mais um número na estatística das mortes diárias.
Luiz Ruffato
Este texto, querido (a) leitor (a), é uma pobre paráfrase de outro, famoso, que a internet ora diz que é de Brecht, ora de Maiakovski, mas que na verdade é do teólogo protestante alemão Martin Niemöller (1892-1984).
Pranto para o homem que não sabia chorar
Havia quitandas naquele tempo. Vendiam verduras, legumes, ovos, algumas chegavam a vender galinhas em pé, quer dizer, vivas, mas eram poucas, pois todas as casas tinham quintal e todos os quintais tinham galinhas. Ia esquecendo: as quitandas mais sortidas tinham à porta, bem visíveis aos passantes, um feixe de varas de marmelo.
Para que serviam? Fica difícil explicar, mas serviam para os pais comprarem uma delas e a guardarem em casa, num lugar à mão e bem visível aos filhos. Quem nunca tomou uma surra de vara de marmelo não pode saber o que é a vida, de que ela é feita, de suas ciladas e enigmas. Há aquela frase: "Quem nunca passou pela rua tal às cinco da tarde não sabe o que é a vida". A frase não é bem essa, mas o sentido é esse.
Uma surra de vara de marmelo era o recurso mais eficaz para colocar a prole em bom estado de moralidade e bom comportamento. Acima dela, só havia o recurso capital de ameaçar o filho com um colégio interno da época: Caraça! Ir para o Caraça, a possibilidade de ir para o Caraça era uma pena de morte, uma condenação ao inferno, um atestado de que o guri não tinha jeito nem futuro.
Houve a tarde em que o irmão mais velho fez uma lambança com umas tintas que o pai comprara para pintar a casa de Segredo, o cachorro, que era solto à noite para evitar que os amigos do alheio pulassem para o quintal e roubassem as galinhas -repito, todas as casas tinham galinhas.
E "amigos do alheio" era uma expressão, uma metáfora civilizada que os jornais usavam para se referirem aos ladrões de qualquer coisa, inclusive de galinhas.
Pois o irmão foi surrado com vara de marmelo e chorou. O pai então proferiu a sentença que ele jamais esqueceria:
Homem não chora!
Em surras seguintes e sucessivas, com a mesma vara de marmelo (ela nunca se quebrava, por mais violenta que tivesse sido a surra anterior), o irmão tinha o direito de gritar, de urrar, de grunhir como um leitão na hora em que entra na faca, mas não de chorar.
Por isso, mesmo sem nunca ter tomado uma surra daquelas, ele sabia que um homem não pode chorar, nem mesmo quando açoitado por vara de marmelo. O vizinho do Lins, que tinha um filho considerado perdido, percebendo que a vara de marmelo era ineficaz como um remédio com data de validade vencida, adotou uma tira de borracha que servira de pneu a um velocípede desativado. Tal como a vara de marmelo, era maleável mas inquebrável, deixava lanhos nas pernas do filho -que mais tarde chegaria a ser capitão-do-mar-e-guerra, medalhado não em guerra nem em mar, mas por tempo de serviço.
Homem não chora e, por isso, ele decidiu que seria um homem e jamais choraria.
Chorou mais tarde, quase homem feito. Esquecido de que homem não chora, ele chorou quando o Brasil perdeu para o Uruguai no final da Copa do Mundo de 1950. Não era homem. Atrás do gol, viu quando Gighia chutou e o estádio emudeceu e logo depois chorava, seguramente o maior pranto coletivo da história da humanidade, 200 mil pessoas que não eram homens, chorando sem vergonha de não serem homens.
Ele não podia ou não sabia chorar? Essa era a questão. Volta e meia forçava a barra, lembrava as coisas tristes que lhe aconteceram, o dia em que o pai o colocou de castigo, atribuindo-lhe a quebra de uma moringa. A perda da medalhinha de Nossa Senhora de Lourdes que a madrinha lhe dera, uma medalhinha de ouro que, segundo a madrinha, o livraria de todo o mal, amém.
Daí lhe veio a certeza. Poder chorar até que podia. O diabo é que ele não sabia mesmo chorar. Chorar é como o samba que não se aprende na escola: ou se nasce sabendo, ou nunca se sabe. Bem verdade que ele desconfiou de que os outros chorassem errado, misturando motivos. Por exemplo: o irmão, que era um Phd na matéria, quando chorava, fazia um embrulho de coisas e desditas, um mix de quebrações de cara e obtinha um pranto copioso, sincero, lágrima puxando lágrima, soluço puxando soluço.
Quando perdeu uma bolada num cassino de Montevidéu, foi para o quarto do hotel, bebeu meia garrafa de uísque e, tarde da noite, telefonou dizendo que, passados 40 e tantos anos, ainda estava chorando pela morte de Segredo.
Tivera ele essa virtude, aquilo que os ascetas chamam de "dom das lágrimas"! José, vendido por seus irmãos ao faraó do Egito, tornou-se poderoso e um dia recebeu os irmãos que o procuraram para matar a fome. Os irmãos não o reconheceram. José perguntou-lhes sobre o pai e retirou-se a um canto para chorar. Depois, sim, deu-se a conhecer e matou a fome dos irmãos que o venderam.
Jesus chorou quando soube da morte de Lázaro e o ressuscitou. A lágrima é um dom, e ele não mereceu esse dom nem mesmo quando Débora foi embora de seus sonhos e, como nos tangos, nunca mais voltou.
Carlos Heitor Cony, "Crônicas para ler na escola"
Para que serviam? Fica difícil explicar, mas serviam para os pais comprarem uma delas e a guardarem em casa, num lugar à mão e bem visível aos filhos. Quem nunca tomou uma surra de vara de marmelo não pode saber o que é a vida, de que ela é feita, de suas ciladas e enigmas. Há aquela frase: "Quem nunca passou pela rua tal às cinco da tarde não sabe o que é a vida". A frase não é bem essa, mas o sentido é esse.
Uma surra de vara de marmelo era o recurso mais eficaz para colocar a prole em bom estado de moralidade e bom comportamento. Acima dela, só havia o recurso capital de ameaçar o filho com um colégio interno da época: Caraça! Ir para o Caraça, a possibilidade de ir para o Caraça era uma pena de morte, uma condenação ao inferno, um atestado de que o guri não tinha jeito nem futuro.
Houve a tarde em que o irmão mais velho fez uma lambança com umas tintas que o pai comprara para pintar a casa de Segredo, o cachorro, que era solto à noite para evitar que os amigos do alheio pulassem para o quintal e roubassem as galinhas -repito, todas as casas tinham galinhas.
E "amigos do alheio" era uma expressão, uma metáfora civilizada que os jornais usavam para se referirem aos ladrões de qualquer coisa, inclusive de galinhas.
Pois o irmão foi surrado com vara de marmelo e chorou. O pai então proferiu a sentença que ele jamais esqueceria:
Homem não chora!
Em surras seguintes e sucessivas, com a mesma vara de marmelo (ela nunca se quebrava, por mais violenta que tivesse sido a surra anterior), o irmão tinha o direito de gritar, de urrar, de grunhir como um leitão na hora em que entra na faca, mas não de chorar.
Por isso, mesmo sem nunca ter tomado uma surra daquelas, ele sabia que um homem não pode chorar, nem mesmo quando açoitado por vara de marmelo. O vizinho do Lins, que tinha um filho considerado perdido, percebendo que a vara de marmelo era ineficaz como um remédio com data de validade vencida, adotou uma tira de borracha que servira de pneu a um velocípede desativado. Tal como a vara de marmelo, era maleável mas inquebrável, deixava lanhos nas pernas do filho -que mais tarde chegaria a ser capitão-do-mar-e-guerra, medalhado não em guerra nem em mar, mas por tempo de serviço.
Homem não chora e, por isso, ele decidiu que seria um homem e jamais choraria.
O irmão, sim, era um bezerro desmamado, chorava à toa, nem precisava de vara de marmelo. Chorou no dia em que Segredo morreu envenenado -um amigo do alheio, antes de pular no quintal, jogou-lhe um pedaço de carne com arsênico.
Chorou mais tarde, quase homem feito. Esquecido de que homem não chora, ele chorou quando o Brasil perdeu para o Uruguai no final da Copa do Mundo de 1950. Não era homem. Atrás do gol, viu quando Gighia chutou e o estádio emudeceu e logo depois chorava, seguramente o maior pranto coletivo da história da humanidade, 200 mil pessoas que não eram homens, chorando sem vergonha de não serem homens.
Ele não podia ou não sabia chorar? Essa era a questão. Volta e meia forçava a barra, lembrava as coisas tristes que lhe aconteceram, o dia em que o pai o colocou de castigo, atribuindo-lhe a quebra de uma moringa. A perda da medalhinha de Nossa Senhora de Lourdes que a madrinha lhe dera, uma medalhinha de ouro que, segundo a madrinha, o livraria de todo o mal, amém.
Não chorou nem mesmo quando, naquela primeira noite após a morte de sua mãe, ele se sentiu sozinho na vida e perdido no mundo.
Daí lhe veio a certeza. Poder chorar até que podia. O diabo é que ele não sabia mesmo chorar. Chorar é como o samba que não se aprende na escola: ou se nasce sabendo, ou nunca se sabe. Bem verdade que ele desconfiou de que os outros chorassem errado, misturando motivos. Por exemplo: o irmão, que era um Phd na matéria, quando chorava, fazia um embrulho de coisas e desditas, um mix de quebrações de cara e obtinha um pranto copioso, sincero, lágrima puxando lágrima, soluço puxando soluço.
Quando perdeu uma bolada num cassino de Montevidéu, foi para o quarto do hotel, bebeu meia garrafa de uísque e, tarde da noite, telefonou dizendo que, passados 40 e tantos anos, ainda estava chorando pela morte de Segredo.
Tivera ele essa virtude, aquilo que os ascetas chamam de "dom das lágrimas"! José, vendido por seus irmãos ao faraó do Egito, tornou-se poderoso e um dia recebeu os irmãos que o procuraram para matar a fome. Os irmãos não o reconheceram. José perguntou-lhes sobre o pai e retirou-se a um canto para chorar. Depois, sim, deu-se a conhecer e matou a fome dos irmãos que o venderam.
Jesus chorou quando soube da morte de Lázaro e o ressuscitou. A lágrima é um dom, e ele não mereceu esse dom nem mesmo quando Débora foi embora de seus sonhos e, como nos tangos, nunca mais voltou.
Carlos Heitor Cony, "Crônicas para ler na escola"
Procura-se fugitivo em Ipanema
Avisa-se às pessoas de bem que um mimoso bicudo desapareceu da casa de seu amo e senhor no bairro de Ipanema. O fugitivo ainda é jovem e não atingiu a idade em que se torna preto de bico branco.
Come alpiste e vários outros alimentos, mas tem uma fraqueza especial por sementes de cânhamo. Quando estas sementes lhe são oferecidas pela manhã, ele vem comer na mão; mas uma vez alimentado não convém introduzir nem a mão nem um dedo sequer na gaiola, pois o intruso será recebido com uma forte bicada. Há muito, entretanto, ele não tem a sua semente predileta, pois as autoridades (in)competentes descobriram que o citado cânhamo, em latim Cannabis sativa, é a mesma espécie cuja resina produz efeitos estupefacientes quando as plantas são dissecadas e trituradas por pessoas viciosas para obter o produto vulgarmente chamado maconha.
Meu bicudo é, de seu natural, desconfiado e valente, já tendo derrotado em pelejas memoráveis dois canários-da-terra e um grande pássaro-preto. É também muito ciumento, pois parou de cantar desde o dia em que o referido pássaro-preto foi admitido na mesma varanda onde reside e começou a cantar alto e desafinadamente.
Apesar de seu natural aguerrido, é propenso a folguedos juvenis. Qualquer objeto estranho que se coloque na gaiola é inicialmente examinado de longe, primeiro com o olho esquerdo, depois com o direito. Depois é examinado mais de perto, e afinal recebe uma bicada.
Se o objeto não reage, e é leve, é logo transformado em brinquedo; pedaços de barbante, principalmente coloridos, são de agrado especial.
Dispondo de água limpa, o fugitivo se banha diariamente, e no rigor do verão mais de uma vez por dia; já atingiu o nível de educação em que não procura se banhar no bebedouro nem beber a água destinada ao banho. Depois do banho faz sua meticulosa toalete com o bico e coca várias vezes a orelha com a patinha.
Quando está dormindo e é despertado demonstra um terrível mau humor e se posta em atitude de defesa, de bico aberto, produzindo um grasnar semelhante ao de uma galinha choca.
Bem tratado é, entretanto, capaz de gestos suaves e atitudes distintas.
O fugitivo foi criado na roça e não conhece a topografia do Rio de Janeiro, de maneira que dificilmente voltará a sua varanda. Caso ele venha a cair em algum alçapão, a pessoa que o encontrar fará obra caridosa devolvendo-o ao seu dono, que é homem já de certa idade, com a vida esburacada de tristezas e desilusões, não possuindo gato, nem mulher, nem cachorro por falta de espaço no lar.
O dono desolado antecipadamente agradece.
Rubem Braga, "Recado de primavera"
Come alpiste e vários outros alimentos, mas tem uma fraqueza especial por sementes de cânhamo. Quando estas sementes lhe são oferecidas pela manhã, ele vem comer na mão; mas uma vez alimentado não convém introduzir nem a mão nem um dedo sequer na gaiola, pois o intruso será recebido com uma forte bicada. Há muito, entretanto, ele não tem a sua semente predileta, pois as autoridades (in)competentes descobriram que o citado cânhamo, em latim Cannabis sativa, é a mesma espécie cuja resina produz efeitos estupefacientes quando as plantas são dissecadas e trituradas por pessoas viciosas para obter o produto vulgarmente chamado maconha.
Meu bicudo é, de seu natural, desconfiado e valente, já tendo derrotado em pelejas memoráveis dois canários-da-terra e um grande pássaro-preto. É também muito ciumento, pois parou de cantar desde o dia em que o referido pássaro-preto foi admitido na mesma varanda onde reside e começou a cantar alto e desafinadamente.
Apesar de seu natural aguerrido, é propenso a folguedos juvenis. Qualquer objeto estranho que se coloque na gaiola é inicialmente examinado de longe, primeiro com o olho esquerdo, depois com o direito. Depois é examinado mais de perto, e afinal recebe uma bicada.
Se o objeto não reage, e é leve, é logo transformado em brinquedo; pedaços de barbante, principalmente coloridos, são de agrado especial.
Dispondo de água limpa, o fugitivo se banha diariamente, e no rigor do verão mais de uma vez por dia; já atingiu o nível de educação em que não procura se banhar no bebedouro nem beber a água destinada ao banho. Depois do banho faz sua meticulosa toalete com o bico e coca várias vezes a orelha com a patinha.
Quando está dormindo e é despertado demonstra um terrível mau humor e se posta em atitude de defesa, de bico aberto, produzindo um grasnar semelhante ao de uma galinha choca.
Bem tratado é, entretanto, capaz de gestos suaves e atitudes distintas.
O fugitivo foi criado na roça e não conhece a topografia do Rio de Janeiro, de maneira que dificilmente voltará a sua varanda. Caso ele venha a cair em algum alçapão, a pessoa que o encontrar fará obra caridosa devolvendo-o ao seu dono, que é homem já de certa idade, com a vida esburacada de tristezas e desilusões, não possuindo gato, nem mulher, nem cachorro por falta de espaço no lar.
O dono desolado antecipadamente agradece.
Rubem Braga, "Recado de primavera"
quarta-feira, dezembro 3
Era uma noite de luar
O táxi ia rodando devagar pela rua mal iluminada, para que eu pudesse ir vendo os números das casas. Quando vi o 108, mandei parar. Tinha de ir ao 250 e perguntar por dona Judite. Era quase certo que não me seguiam; de qualquer modo não convinha parar o táxi diante da casa para não chamar a atenção. Tive, além disto, o cuidado de deixar o carro se afastar sem que o chofer pudesse ver a casa em que eu entrava. Naquele tempo vivíamos cercados de precauções. O menor descuido era a prisão – e as notícias que vinham lá de dentro eram de fazer tremer.
Andei pela calçada. Era uma rua sossegada, em um bairro onde antigamente viviam famílias ricas. Agora os ricos moravam em outras partes da cidade, e aqueles casarões envelhecidos, com seus parques de grandes árvores, pareciam dormir. Uma vez ou outra passava um auto; depois o luar aumentava o sossego da rua.
Apertei a campainha. Uma mulher gorda me disse que fosse pelo jardim, ao lado da casa; era uma porta que tinha uma escadinha nos fundos.
– Quem é?
Marina não me havia reconhecido e com certeza estava inquieta. Tranquilizei-a:
– Sou eu, Domingos.
A porta abriu-se.
Tinha visto Marina poucas vezes, sempre em companhia do marido, na rua. Nunca havíamos trocado mais de duas ou três palavras. Não se podia dizer que fosse bonita, mas era agradável com seu ar um pouco seco, um pouco nervoso, e seu jeito de vestir-se com severidade. Agora estava diante de mim e não pude deixar de sorrir quando a vi metida em um macacão.
– Trago notícias do Alberto.
Dei o recado que um político solto no dia anterior havia trazido. Alberto mandava dizer que estava bem, que há muito tempo já não o interrogavam, e que não tinha nenhuma esperança de ser libertado tão cedo. Era bom que ela tentasse sair do Rio, onde podia ser presa a qualquer momento, e fosse para o Nordeste, onde morava sua família. A viagem de avião ou por mar seria impossível. O melhor era ir de trem até Belo Horizonte e seguir para Alagoas pelo São Francisco. Havia uma pessoa que podia arranjar uma parte do dinheiro, e um endereço em Belo Horizonte onde talvez conseguisse mais. Era preciso abrir o caixote de livros. e queimar um papel que estava dentro das Poesias de Olavo Bilac. Dei-lhe um número para onde devia telefonar.
– Acha que eles vão deixar o Alberto preso muito tempo?
Dei minha opinião com sinceridade. Alberto estava comprometido. Quando o pegou, a polícia não sabia grande coisa dele, mas lá dentro sua situação tinha piorado muito. Parece que tinham aparecido umas histórias velhas, de São Paulo…
– E você, como vai?
Ela fez um gesto desanimado. Podia continuar naquele quarto com direito a comida, mais uns oito dias. Já não tinha dinheiro nem para cigarros. Ofereci-lhe dos meus:
– Não sabia que você fumava.
Não fumava antes. Mas ali, obrigada a ficar dentro do quarto dias e dias, semanas e semanas começou a fumar. Há mais de três meses que não saía. Andava apenas pelo velho e pequeno parque, nos fundos da casa, quando não chovia. Havia lido todos os livros e estava cansada de ler.
– Isso aqui é pior do que prisão. Às vezes tenho vontade de sair, tomar um ônibus, andar por aí, ir a uma praia…
Arriscara-se a ir a um cinema do bairro, e quase morrera de medo. Na volta, um homem a seguiu. Teve certeza de que ia ser presa; quando estava perto de casa, o homem, mal-encarado, apertou o passo e a deteve, tocando-lhe o braço com a mão. Parou, trêmula, e logo saiu correndo e entrou em casa; jogou-se na cama chorando, num desabafo nervoso. O homem lhe havia feito uma proposta amorosa…
Contava essas coisas sentada na cama, um pouco excitada; e estava engraçada assim, metida no macacão do marido, com uma régua na mão, contando o seu susto. Rimos, mas logo ela se pôs a andar no quarto para um lado e outro, batendo com a régua na coxa.
– Que é que você acha que devo fazer?
Acendi um cigarro. Fazia calor. Na parede havia um quadro sem interesse, de um pintor amigo do casal. Ela pensava em procurar alguém que fosse amigo do governo. Talvez o doutor Antunes conseguisse…
– Também está preso.
– O doutor Antunes? Não é possível!
Vi que estava mal informada do que acontecia, e lhe dei várias notícias. Nenhuma era alegre. Sentou-se novamente na cama, batendo com a régua no joelho. Ficamos em silêncio. Achei que devia me despedir, mas ela me deteve:
– Espere, quero saber de uma coisa…
Perguntou-me pelos Amaral, se era verdade que a mulher tinha se suicidado. Era boato, ou pelo menos, parecia. Havia quem dissesse que o casal estava no Paraguai; outros diziam que ele estava preso no norte do Paraná, em Londrina…
Surgiram outros nomes. Eu quase não podia dar informações sobre ninguém, e muitos eu não conhecia nem de nome nem de vista. Voltamos a falar de Alberto. Ela havia perdido o nervosismo; falava agora no seu tom habitual, um pouco seco, um pouco distante. Falava do marido e de si mesma como se estivesse examinando um problema alheio, com frieza e lógica. Tinha na gaveta um velho Guia Levi, e consultou preços de passagens e horários. Certamente deveria tomar o trem em alguma estação do estado do Rio, se resolvesse ir para o Norte.
– Vai?
– Isso é que estou pensando. Em Alagoas posso ficar na fazenda de minha tia, perto de São Miguel. Ali não haveria nenhum perigo, mas…
Voltou a perguntar se não haveria mesmo nenhum jeito de fazer alguma coisa pela libertação de Alberto. Talvez aquele ex-deputado, amigo do Amaral, pudesse…
Balancei a cabeça. A polícia não estava soltando ninguém. Prendera gente demais, inocentes e culpados, e enquanto não interrogava todo mundo, não apurava as coisas, não queria soltar ninguém. Uma ou outra pessoa conseguia sair quando tinha proteção muito forte e estava completamente inocente. Alberto já fora preso antes, era um elemento marcado. A única esperança estava na mudança que diziam que ia haver no Ministério. Mas estavam sempre dizendo essas coisas, e ninguém saía do governo. Dava a impressão de que ia ser assim eternamente…
– Que coisa!
Voltou a falar de Alberto, contou detalhes de sua prisão. Ela havia escapado por milagre. Mas estava ali, sozinha, sem poder sair de casa… Começou quase a lamentar-se e subitamente pareceu de novo tranquila. Os cabelos despenteados e o macacão lhe davam um ar ao mesmo tempo gracioso e cordial de rapazola. Devia ter uns trinta anos. Agora sua voz parecia ter cinquenta:
– A situação é esta: se não fosse por causa do Alberto eu poderia ter fugido para o Sul. Mas perdi a oportunidade. Mais tarde, na hora de alugar este quarto, estive quase resolvendo outra vez fugir. Mas queria esperar Alberto… Está visto que não posso ficar esperando a vida inteira. O senhor acha que há possibilidade…
Era engraçado que me chamasse de “senhor”, quando começara me tratando de “você”. Mas logo, na frase seguinte, com uma pequena hesitação na voz, voltou a me chamar de “você”.
Levantei-me e procurei com a vista um cinzeiro para pôr o cigarro. Não havia. Abri uma banda da janela para jogá-lo no jardim.
– Posso deixar a janela aberta? Está quente…
Sentada na cama, ela ficou em silêncio. Resolvi ir-me embora, e fiquei pensando se devia lhe dar o pouco dinheiro que tinha no bolso. Eu voltaria de ônibus. Tirei a nota do bolso. Ela aceitou secamente e me deu um aperto de mão rápido.
Sua voz era tranquila, quase fria.
– Obrigada. Se tiver alguma novidade estes dias, apareça outra vez. Meu nome aqui é Judite de Sousa.
– Sei. Tem telefone?
– Não. Ah, um momento! Pode pôr uma carta no correio para mim?
Tirou uma carta da gaveta, meteu-a em um envelope e começou a escrever o endereço. Junto à janela, lá fora, eu via as grandes árvores gordas, beijadas pelo luar, enquanto ouvia o ranger da pena no papel.
Comentei ao acaso:
– Bonito luar…
Ela acabara de escrever o endereço e respondeu, dando um olhar à janela:
– É.
Foi um “é” tão seco que me arrependi do que havia dito, como se tivesse sido alguma coisa inconveniente. Depois de fechar o envelope ela veio para junto da janela onde eu estava. Para ver melhor lá fora, abri o outro lado da janela e a lua apareceu, redonda, branca, entre as copas das árvores. Foi apenas um instante. Ela fechou os dois lados da janela com brutalidade:
– Não faça isso! Estúpido! Não vê que eu não posso com isso? Que estou sozinha desde que Alberto foi preso?
Ficou um momento diante de mim, pálida, os lábios trêmulos; eu não sabia o que dizer.
– Vá-se embora!
Lançou-se na cama, escondeu a cabeça nas mãos e começou a chorar. Os soluços agitavam seu corpo magro e nervoso sob o macacão azul.
Rubem Braga, “Melhores contos“
Andei pela calçada. Era uma rua sossegada, em um bairro onde antigamente viviam famílias ricas. Agora os ricos moravam em outras partes da cidade, e aqueles casarões envelhecidos, com seus parques de grandes árvores, pareciam dormir. Uma vez ou outra passava um auto; depois o luar aumentava o sossego da rua.
Apertei a campainha. Uma mulher gorda me disse que fosse pelo jardim, ao lado da casa; era uma porta que tinha uma escadinha nos fundos.
Ao bater, ouvi um rumor lá dentro. Depois senti que alguém me espiava pela veneziana, sem dizer nada. Bati outra vez. Ouvi ainda uns rumores dentro do quarto e, por fim, uma voz nervosa:
– Quem é?
Marina não me havia reconhecido e com certeza estava inquieta. Tranquilizei-a:
– Sou eu, Domingos.
A porta abriu-se.
Tinha visto Marina poucas vezes, sempre em companhia do marido, na rua. Nunca havíamos trocado mais de duas ou três palavras. Não se podia dizer que fosse bonita, mas era agradável com seu ar um pouco seco, um pouco nervoso, e seu jeito de vestir-se com severidade. Agora estava diante de mim e não pude deixar de sorrir quando a vi metida em um macacão.
– Trago notícias do Alberto.
Dei o recado que um político solto no dia anterior havia trazido. Alberto mandava dizer que estava bem, que há muito tempo já não o interrogavam, e que não tinha nenhuma esperança de ser libertado tão cedo. Era bom que ela tentasse sair do Rio, onde podia ser presa a qualquer momento, e fosse para o Nordeste, onde morava sua família. A viagem de avião ou por mar seria impossível. O melhor era ir de trem até Belo Horizonte e seguir para Alagoas pelo São Francisco. Havia uma pessoa que podia arranjar uma parte do dinheiro, e um endereço em Belo Horizonte onde talvez conseguisse mais. Era preciso abrir o caixote de livros. e queimar um papel que estava dentro das Poesias de Olavo Bilac. Dei-lhe um número para onde devia telefonar.
– Acha que eles vão deixar o Alberto preso muito tempo?
Dei minha opinião com sinceridade. Alberto estava comprometido. Quando o pegou, a polícia não sabia grande coisa dele, mas lá dentro sua situação tinha piorado muito. Parece que tinham aparecido umas histórias velhas, de São Paulo…
– E você, como vai?
Ela fez um gesto desanimado. Podia continuar naquele quarto com direito a comida, mais uns oito dias. Já não tinha dinheiro nem para cigarros. Ofereci-lhe dos meus:
– Não sabia que você fumava.
Não fumava antes. Mas ali, obrigada a ficar dentro do quarto dias e dias, semanas e semanas começou a fumar. Há mais de três meses que não saía. Andava apenas pelo velho e pequeno parque, nos fundos da casa, quando não chovia. Havia lido todos os livros e estava cansada de ler.
– Isso aqui é pior do que prisão. Às vezes tenho vontade de sair, tomar um ônibus, andar por aí, ir a uma praia…
Arriscara-se a ir a um cinema do bairro, e quase morrera de medo. Na volta, um homem a seguiu. Teve certeza de que ia ser presa; quando estava perto de casa, o homem, mal-encarado, apertou o passo e a deteve, tocando-lhe o braço com a mão. Parou, trêmula, e logo saiu correndo e entrou em casa; jogou-se na cama chorando, num desabafo nervoso. O homem lhe havia feito uma proposta amorosa…
Contava essas coisas sentada na cama, um pouco excitada; e estava engraçada assim, metida no macacão do marido, com uma régua na mão, contando o seu susto. Rimos, mas logo ela se pôs a andar no quarto para um lado e outro, batendo com a régua na coxa.
– Que é que você acha que devo fazer?
Acendi um cigarro. Fazia calor. Na parede havia um quadro sem interesse, de um pintor amigo do casal. Ela pensava em procurar alguém que fosse amigo do governo. Talvez o doutor Antunes conseguisse…
– Também está preso.
– O doutor Antunes? Não é possível!
Vi que estava mal informada do que acontecia, e lhe dei várias notícias. Nenhuma era alegre. Sentou-se novamente na cama, batendo com a régua no joelho. Ficamos em silêncio. Achei que devia me despedir, mas ela me deteve:
– Espere, quero saber de uma coisa…
Perguntou-me pelos Amaral, se era verdade que a mulher tinha se suicidado. Era boato, ou pelo menos, parecia. Havia quem dissesse que o casal estava no Paraguai; outros diziam que ele estava preso no norte do Paraná, em Londrina…
Surgiram outros nomes. Eu quase não podia dar informações sobre ninguém, e muitos eu não conhecia nem de nome nem de vista. Voltamos a falar de Alberto. Ela havia perdido o nervosismo; falava agora no seu tom habitual, um pouco seco, um pouco distante. Falava do marido e de si mesma como se estivesse examinando um problema alheio, com frieza e lógica. Tinha na gaveta um velho Guia Levi, e consultou preços de passagens e horários. Certamente deveria tomar o trem em alguma estação do estado do Rio, se resolvesse ir para o Norte.
– Vai?
– Isso é que estou pensando. Em Alagoas posso ficar na fazenda de minha tia, perto de São Miguel. Ali não haveria nenhum perigo, mas…
Voltou a perguntar se não haveria mesmo nenhum jeito de fazer alguma coisa pela libertação de Alberto. Talvez aquele ex-deputado, amigo do Amaral, pudesse…
Balancei a cabeça. A polícia não estava soltando ninguém. Prendera gente demais, inocentes e culpados, e enquanto não interrogava todo mundo, não apurava as coisas, não queria soltar ninguém. Uma ou outra pessoa conseguia sair quando tinha proteção muito forte e estava completamente inocente. Alberto já fora preso antes, era um elemento marcado. A única esperança estava na mudança que diziam que ia haver no Ministério. Mas estavam sempre dizendo essas coisas, e ninguém saía do governo. Dava a impressão de que ia ser assim eternamente…
– Que coisa!
Voltou a falar de Alberto, contou detalhes de sua prisão. Ela havia escapado por milagre. Mas estava ali, sozinha, sem poder sair de casa… Começou quase a lamentar-se e subitamente pareceu de novo tranquila. Os cabelos despenteados e o macacão lhe davam um ar ao mesmo tempo gracioso e cordial de rapazola. Devia ter uns trinta anos. Agora sua voz parecia ter cinquenta:
– A situação é esta: se não fosse por causa do Alberto eu poderia ter fugido para o Sul. Mas perdi a oportunidade. Mais tarde, na hora de alugar este quarto, estive quase resolvendo outra vez fugir. Mas queria esperar Alberto… Está visto que não posso ficar esperando a vida inteira. O senhor acha que há possibilidade…
Era engraçado que me chamasse de “senhor”, quando começara me tratando de “você”. Mas logo, na frase seguinte, com uma pequena hesitação na voz, voltou a me chamar de “você”.
Levantei-me e procurei com a vista um cinzeiro para pôr o cigarro. Não havia. Abri uma banda da janela para jogá-lo no jardim.
– Posso deixar a janela aberta? Está quente…
Sentada na cama, ela ficou em silêncio. Resolvi ir-me embora, e fiquei pensando se devia lhe dar o pouco dinheiro que tinha no bolso. Eu voltaria de ônibus. Tirei a nota do bolso. Ela aceitou secamente e me deu um aperto de mão rápido.
Sua voz era tranquila, quase fria.
– Obrigada. Se tiver alguma novidade estes dias, apareça outra vez. Meu nome aqui é Judite de Sousa.
– Sei. Tem telefone?
– Não. Ah, um momento! Pode pôr uma carta no correio para mim?
Tirou uma carta da gaveta, meteu-a em um envelope e começou a escrever o endereço. Junto à janela, lá fora, eu via as grandes árvores gordas, beijadas pelo luar, enquanto ouvia o ranger da pena no papel.
Comentei ao acaso:
– Bonito luar…
Ela acabara de escrever o endereço e respondeu, dando um olhar à janela:
– É.
Foi um “é” tão seco que me arrependi do que havia dito, como se tivesse sido alguma coisa inconveniente. Depois de fechar o envelope ela veio para junto da janela onde eu estava. Para ver melhor lá fora, abri o outro lado da janela e a lua apareceu, redonda, branca, entre as copas das árvores. Foi apenas um instante. Ela fechou os dois lados da janela com brutalidade:
– Não faça isso! Estúpido! Não vê que eu não posso com isso? Que estou sozinha desde que Alberto foi preso?
Ficou um momento diante de mim, pálida, os lábios trêmulos; eu não sabia o que dizer.
– Vá-se embora!
Lançou-se na cama, escondeu a cabeça nas mãos e começou a chorar. Os soluços agitavam seu corpo magro e nervoso sob o macacão azul.
Rubem Braga, “Melhores contos“
Arábia
A Rua North Richmond, por ser sem saída, era uma rua tranquila, exceto na hora em que a escola dos Irmãos Cristãos liberava os meninos. Uma casa desabitada de dois andares ficava no final da rua, isolada das vizinhas em um terreno quadrado. As outras casas da rua, conscientes das vidas decentes que ali viviam, olhavam umas para as outras com fachadas morenas e imperturbáveis.
O antigo inquilino da nossa casa, um padre, havia falecido na sala de estar dos fundos. O ar, mofado por ter ficado fechado por muito tempo, pairava em todos os cômodos, e o depósito atrás da cozinha estava repleto de papéis velhos e inúteis. Entre eles, encontrei alguns livros de capa mole, cujas páginas estavam enroladas e úmidas: O Abade, de Walter Scott, O Devoto Comungante e As Memórias de Vidocq. Gostei mais deste último porque suas páginas eram amarelas. O jardim selvagem atrás da casa tinha uma macieira central e alguns arbustos dispersos, sob um dos quais encontrei a bomba de bicicleta enferrujada do falecido inquilino. Ele havia sido um padre muito caridoso; em seu testamento, deixou todo o seu dinheiro para instituições e os móveis de sua casa para sua irmã.
Quando os curtos dias de inverno chegavam, o crepúsculo caía antes mesmo de terminarmos o jantar. Ao nos encontrarmos na rua, as casas já estavam sombrias. O céu acima de nós tinha a cor de um violeta em constante mudança, e em direção a ele, as lâmpadas da rua erguiam suas fracas lanternas. O ar frio nos picava e brincávamos até nossos corpos brilharem. Nossos gritos ecoavam na rua silenciosa. Nossa brincadeira nos levava pelas vielas escuras e lamacentas atrás das casas, onde corríamos o risco de sermos atropelados pelas tribos rudes das cabanas, até as portas dos fundos dos jardins escuros e úmidos, de onde odores subiam das cinzas, até os estábulos escuros e fedorentos, onde um cocheiro escovava e alisava o cavalo ou tirava música dos arreios presos. Quando voltávamos para a rua, a luz das janelas da cozinha já iluminava tudo. Se meu tio fosse visto virando a esquina, nos escondíamos nas sombras até que ele estivesse em segurança em casa. Ou, se a irmã de Mangan saísse à porta para chamar o irmão para o chá, nós a observávamos da nossa sombra, olhando para cima e para baixo na rua. Esperávamos para ver se ela ficaria ou entraria e, se ficasse, saíamos da nossa sombra e caminhávamos resignados até a porta de Mangan. Ela nos esperava, sua figura definida pela luz da porta entreaberta. Seu irmão sempre a provocava antes de obedecer, e eu ficava parada junto ao corrimão, observando-a. Seu vestido balançava enquanto ela se movia, e a mecha macia de seu cabelo ondulava de um lado para o outro.
Todas as manhãs eu me deitava no chão da sala de estar, observando a porta dela. A persiana estava abaixada até quase encostar na janela, de modo que eu não pudesse ser visto. Quando ela saía na soleira, meu coração disparava. Eu corria para o corredor, pegava meus livros e a seguia. Mantinha sua figura morena sempre à vista e, quando nos aproximávamos do ponto onde nossos caminhos se separavam, eu acelerava o passo e a ultrapassava. Isso acontecia manhã após manhã. Eu nunca havia falado com ela, exceto por algumas palavras casuais, e ainda assim seu nome era como um chamado para todo o meu sangue insensato.
Sua imagem me acompanhava até nos lugares mais hostis ao romance. Aos sábados à noite, quando minha tia ia ao mercado, eu tinha que ir junto para carregar algumas das compras. Caminhávamos pelas ruas agitadas, empurrados por homens bêbados e mulheres pechinchando, em meio aos palavrões dos operários, às ladainhas estridentes dos balconistas que faziam guarda junto aos barris de bochechas de porco, ao canto nasalado dos cantores de rua, que entoavam canções sobre O'Donovan Rossa ou baladas sobre os problemas em nossa terra natal. Esses ruídos convergiam em uma única sensação de vida para mim: eu imaginava que carregava meu cálice em segurança através de uma multidão de inimigos. Seu nome brotava em meus lábios em momentos de estranhas orações e louvores que eu mesmo não entendia. Meus olhos frequentemente se enchiam de lágrimas (eu não sabia por quê) e, às vezes, uma torrente do meu coração parecia se derramar em meu peito. Eu pensava pouco no futuro. Eu não sabia se algum dia falaria com ela ou não, ou, se falasse, como poderia lhe contar sobre minha confusa admiração. Mas meu corpo era como uma harpa, e suas palavras e gestos eram como dedos deslizando sobre as cordas.
Certa noite, entrei na sala de estar dos fundos, onde o padre havia falecido. Era uma noite escura e chuvosa, e não havia nenhum som na casa. Através de um dos vidros quebrados, ouvi a chuva bater na terra, as finas e incessantes gotas de água brincando nos canteiros encharcados. Alguma lâmpada distante ou janela iluminada brilhava abaixo de mim. Agradeci por poder ver tão pouco. Todos os meus sentidos pareciam desejar se ocultar e, sentindo que eu estava prestes a perdê-los, apertei as palmas das mãos até que tremessem, murmurando: “Ó amor! Ó amor!” muitas vezes.
Finalmente ela falou comigo. Quando me dirigiu as primeiras palavras, fiquei tão confuso que não soube o que responder. Ela perguntou se eu ia para Araby. Esqueci se respondi sim ou não. Seria um bazar esplêndido, disse ela; adoraria ir.
"E por que você não pode?", perguntei.
Enquanto falava, girava uma pulseira de prata no pulso. Disse que não podia ir porque haveria um retiro naquela semana no convento. Seu irmão e dois outros rapazes brigavam pelos seus chapéus e eu estava sozinho junto à grade. Ela segurava uma das pontas da grade, inclinando a cabeça na minha direção. A luz da lâmpada em frente à nossa porta iluminava a curva branca do seu pescoço, destacando os cabelos que ali repousavam e, ao cair, iluminava a mão que estava sobre a grade. A luz incidiu sobre um lado do vestido e captou a borda branca da anágua, mal visível enquanto ela permanecia ali, relaxada.
“Isso é bom para você”, disse ela.
“Se eu for”, eu disse, “trarei algo para você”.
Que inúmeras tolices devastaram meus pensamentos, acordado ou dormindo, depois daquela noite! Eu desejava aniquilar os tediosos dias que se seguiram. Eu me irritava com o trabalho da escola. À noite, no meu quarto, e durante o dia, na sala de aula, a imagem dela se interpunha entre mim e a página que eu me esforçava para ler. As sílabas da palavra Arábia me chamavam através do silêncio em que minha alma se deleitava e lançavam sobre mim um encanto oriental. Pedi permissão para ir ao bazar no sábado à noite. Minha tia ficou surpresa e esperava que não fosse algum assunto maçônico. Respondi a poucas perguntas na aula. Observei o rosto do meu professor passar da amabilidade à severidade; ele esperava que eu não estivesse começando a ficar ocioso. Eu não conseguia reunir meus pensamentos dispersos. Eu mal tinha paciência com o trabalho sério da vida que, agora que se interpunha entre mim e meu desejo, me parecia brincadeira de criança, uma brincadeira de criança feia e monótona.
No sábado de manhã, lembrei meu tio de que gostaria de ir ao bazar à noite. Ele estava se afligindo no cabideiro, procurando a escova de chapéu, e me respondeu secamente:
“Sim, rapaz, eu sei.”
Como ele estava no corredor, não pude entrar na sala de estar e deitar-me junto à janela. Saí de casa de mau humor e caminhei lentamente em direção à escola. O ar estava impiedosamente frio e meu coração já me dava uma mágoa.
Quando cheguei em casa para jantar, meu tio ainda não havia chegado. Mesmo assim, ainda era cedo. Fiquei sentada encarando o relógio por um tempo e, quando o tique-taque começou a me irritar, saí do quarto. Subi as escadas e alcancei a parte superior da casa. Os cômodos altos, frios, vazios e sombrios me libertaram e fui de um cômodo para o outro cantando. Da janela da frente, vi minhas companheiras brincando lá embaixo, na rua. Seus gritos chegavam até mim fracos e indistintos e, encostando a testa no vidro frio, olhei para a casa escura onde ela morava. Talvez eu tenha ficado ali por uma hora, sem ver nada além da figura vestida de marrom projetada pela minha imaginação, discretamente iluminada pela luz do candeeiro no pescoço curvado, na mão sobre o corrimão e na barra do vestido.
Quando desci as escadas novamente, encontrei a Sra. Mercer sentada junto à lareira. Era uma senhora idosa e tagarela, viúva de um agiota, que colecionava selos usados para algum propósito piedoso. Tive que aturar as fofocas da mesa de chá. A refeição se prolongou por mais de uma hora e meu tio ainda não havia chegado. A Sra. Mercer se levantou para ir embora: ela lamentava não poder esperar mais, mas já passava das oito horas e ela não gostava de ficar fora até tarde, pois o ar da noite lhe fazia mal. Quando ela saiu, comecei a andar de um lado para o outro na sala, cerrando os punhos. Minha tia disse:
“Receio que você possa adiar seu bazar para esta noite de Nosso Senhor.”
Às nove horas, ouvi a chave do meu tio na porta do corredor. Ouvi-o falando sozinho e o cabideiro balançando quando recebeu o peso do seu sobretudo. Consegui interpretar esses sinais. Quando ele estava no meio do jantar, pedi-lhe dinheiro para ir ao bazar. Ele havia esquecido.
“As pessoas já estão na cama e acabaram de dormir pela primeira vez”, disse ele.
Eu não sorri. Minha tia disse a ele energicamente:
“Você não pode dar o dinheiro para ele e deixá-lo ir? Você já o reteve até tarde demais.”
Meu tio disse que lamentava muito ter esquecido. Disse que acreditava no velho ditado: "Só trabalho e nada de diversão faz de Jack um rapaz enfadonho". Perguntou-me para onde eu ia e, quando lhe disse pela segunda vez, perguntou-me se eu conhecia "A Despedida do Árabe ao Seu Cavalo". Quando saí da cozinha, ele estava prestes a recitar os versos iniciais da obra para a minha tia.
Apertei um florim na mão enquanto caminhava pela Rua Buckingham em direção à estação. A visão das ruas fervilhando de compradores e ofuscadas pelo gás me fez lembrar o propósito da minha viagem. Sentei-me em um vagão de terceira classe de um trem deserto. Após um atraso insuportável, o trem partiu lentamente da estação. Seguiu lentamente entre casas em ruínas e sobre o rio cintilante. Na Estação Westland Row, uma multidão se aglomerava nas portas do vagão; mas os carregadores os afastaram, dizendo que era um trem especial para o bazar. Permaneci sozinho no vagão vazio. Em poucos minutos, o trem parou ao lado de uma plataforma de madeira improvisada. Saí para a rua e vi pelo mostrador iluminado de um relógio que eram dez para as dez. Diante de mim, um grande edifício exibia o nome mágico.
Não encontrei nenhuma entrada de seis pence e, temendo que o bazar estivesse fechado, entrei rapidamente por uma catraca, entregando um xelim a um homem de aparência cansada. Encontrei-me num grande salão, com uma galeria que o circundava até a metade da altura. Quase todas as bancas estavam fechadas e a maior parte do salão estava às escuras. Reconheci um silêncio semelhante ao que paira numa igreja após a missa. Caminhei timidamente até o centro do bazar. Algumas pessoas estavam reunidas em torno das bancas que ainda estavam abertas. Diante de uma cortina, sobre a qual se lia "Café Chantant" em lâmpadas coloridas, dois homens contavam dinheiro numa bandeja. Ouvi o som das moedas caindo.
Com dificuldade em me lembrar do motivo da minha visita, dirigi-me a uma das bancas e examinei vasos de porcelana e jogos de chá floridos. À porta da banca, uma jovem conversava e ria com dois jovens cavalheiros. Notei o sotaque inglês deles e escutei vagamente a conversa.
“Oh, eu nunca disse tal coisa!”
“Ah, mas você fez sim!”
“Ah, mas eu não fiz isso!”
“Ela não disse isso?”
“Sim. Eu a ouvi.”
“Ah, tem uma… mentirosa!”
Observando-me, a jovem aproximou-se e perguntou-me se eu desejava comprar algo. O tom de sua voz não era encorajador; parecia que ela falava comigo por obrigação. Olhei humildemente para os grandes jarros que se erguiam como guardiões orientais de cada lado da entrada escura da barraca e murmurei:
“Não, obrigado.”
A jovem mudou a posição de um dos vasos e voltou para perto dos dois rapazes. Eles começaram a falar sobre o mesmo assunto. Uma ou duas vezes, a jovem olhou para mim por cima do ombro.
Demorei-me diante da sua banca, embora soubesse que a minha presença era inútil, para que o meu interesse pelos seus produtos parecesse o mais real possível. Depois, virei-me lentamente e caminhei pelo meio do bazar. Deixei as duas moedas de um pence caírem sobre a moeda de seis pence no meu bolso. Ouvi uma voz gritar de uma das extremidades da galeria que a luz tinha se apagado. A parte superior do salão estava agora completamente escura.
Olhando para a escuridão, vi-me como uma criatura dominada e ridicularizada pela vaidade; e meus olhos ardiam de angústia e raiva.
O antigo inquilino da nossa casa, um padre, havia falecido na sala de estar dos fundos. O ar, mofado por ter ficado fechado por muito tempo, pairava em todos os cômodos, e o depósito atrás da cozinha estava repleto de papéis velhos e inúteis. Entre eles, encontrei alguns livros de capa mole, cujas páginas estavam enroladas e úmidas: O Abade, de Walter Scott, O Devoto Comungante e As Memórias de Vidocq. Gostei mais deste último porque suas páginas eram amarelas. O jardim selvagem atrás da casa tinha uma macieira central e alguns arbustos dispersos, sob um dos quais encontrei a bomba de bicicleta enferrujada do falecido inquilino. Ele havia sido um padre muito caridoso; em seu testamento, deixou todo o seu dinheiro para instituições e os móveis de sua casa para sua irmã.
Quando os curtos dias de inverno chegavam, o crepúsculo caía antes mesmo de terminarmos o jantar. Ao nos encontrarmos na rua, as casas já estavam sombrias. O céu acima de nós tinha a cor de um violeta em constante mudança, e em direção a ele, as lâmpadas da rua erguiam suas fracas lanternas. O ar frio nos picava e brincávamos até nossos corpos brilharem. Nossos gritos ecoavam na rua silenciosa. Nossa brincadeira nos levava pelas vielas escuras e lamacentas atrás das casas, onde corríamos o risco de sermos atropelados pelas tribos rudes das cabanas, até as portas dos fundos dos jardins escuros e úmidos, de onde odores subiam das cinzas, até os estábulos escuros e fedorentos, onde um cocheiro escovava e alisava o cavalo ou tirava música dos arreios presos. Quando voltávamos para a rua, a luz das janelas da cozinha já iluminava tudo. Se meu tio fosse visto virando a esquina, nos escondíamos nas sombras até que ele estivesse em segurança em casa. Ou, se a irmã de Mangan saísse à porta para chamar o irmão para o chá, nós a observávamos da nossa sombra, olhando para cima e para baixo na rua. Esperávamos para ver se ela ficaria ou entraria e, se ficasse, saíamos da nossa sombra e caminhávamos resignados até a porta de Mangan. Ela nos esperava, sua figura definida pela luz da porta entreaberta. Seu irmão sempre a provocava antes de obedecer, e eu ficava parada junto ao corrimão, observando-a. Seu vestido balançava enquanto ela se movia, e a mecha macia de seu cabelo ondulava de um lado para o outro.
Todas as manhãs eu me deitava no chão da sala de estar, observando a porta dela. A persiana estava abaixada até quase encostar na janela, de modo que eu não pudesse ser visto. Quando ela saía na soleira, meu coração disparava. Eu corria para o corredor, pegava meus livros e a seguia. Mantinha sua figura morena sempre à vista e, quando nos aproximávamos do ponto onde nossos caminhos se separavam, eu acelerava o passo e a ultrapassava. Isso acontecia manhã após manhã. Eu nunca havia falado com ela, exceto por algumas palavras casuais, e ainda assim seu nome era como um chamado para todo o meu sangue insensato.
Sua imagem me acompanhava até nos lugares mais hostis ao romance. Aos sábados à noite, quando minha tia ia ao mercado, eu tinha que ir junto para carregar algumas das compras. Caminhávamos pelas ruas agitadas, empurrados por homens bêbados e mulheres pechinchando, em meio aos palavrões dos operários, às ladainhas estridentes dos balconistas que faziam guarda junto aos barris de bochechas de porco, ao canto nasalado dos cantores de rua, que entoavam canções sobre O'Donovan Rossa ou baladas sobre os problemas em nossa terra natal. Esses ruídos convergiam em uma única sensação de vida para mim: eu imaginava que carregava meu cálice em segurança através de uma multidão de inimigos. Seu nome brotava em meus lábios em momentos de estranhas orações e louvores que eu mesmo não entendia. Meus olhos frequentemente se enchiam de lágrimas (eu não sabia por quê) e, às vezes, uma torrente do meu coração parecia se derramar em meu peito. Eu pensava pouco no futuro. Eu não sabia se algum dia falaria com ela ou não, ou, se falasse, como poderia lhe contar sobre minha confusa admiração. Mas meu corpo era como uma harpa, e suas palavras e gestos eram como dedos deslizando sobre as cordas.
Certa noite, entrei na sala de estar dos fundos, onde o padre havia falecido. Era uma noite escura e chuvosa, e não havia nenhum som na casa. Através de um dos vidros quebrados, ouvi a chuva bater na terra, as finas e incessantes gotas de água brincando nos canteiros encharcados. Alguma lâmpada distante ou janela iluminada brilhava abaixo de mim. Agradeci por poder ver tão pouco. Todos os meus sentidos pareciam desejar se ocultar e, sentindo que eu estava prestes a perdê-los, apertei as palmas das mãos até que tremessem, murmurando: “Ó amor! Ó amor!” muitas vezes.
Finalmente ela falou comigo. Quando me dirigiu as primeiras palavras, fiquei tão confuso que não soube o que responder. Ela perguntou se eu ia para Araby. Esqueci se respondi sim ou não. Seria um bazar esplêndido, disse ela; adoraria ir.
"E por que você não pode?", perguntei.
Enquanto falava, girava uma pulseira de prata no pulso. Disse que não podia ir porque haveria um retiro naquela semana no convento. Seu irmão e dois outros rapazes brigavam pelos seus chapéus e eu estava sozinho junto à grade. Ela segurava uma das pontas da grade, inclinando a cabeça na minha direção. A luz da lâmpada em frente à nossa porta iluminava a curva branca do seu pescoço, destacando os cabelos que ali repousavam e, ao cair, iluminava a mão que estava sobre a grade. A luz incidiu sobre um lado do vestido e captou a borda branca da anágua, mal visível enquanto ela permanecia ali, relaxada.
“Isso é bom para você”, disse ela.
“Se eu for”, eu disse, “trarei algo para você”.
Que inúmeras tolices devastaram meus pensamentos, acordado ou dormindo, depois daquela noite! Eu desejava aniquilar os tediosos dias que se seguiram. Eu me irritava com o trabalho da escola. À noite, no meu quarto, e durante o dia, na sala de aula, a imagem dela se interpunha entre mim e a página que eu me esforçava para ler. As sílabas da palavra Arábia me chamavam através do silêncio em que minha alma se deleitava e lançavam sobre mim um encanto oriental. Pedi permissão para ir ao bazar no sábado à noite. Minha tia ficou surpresa e esperava que não fosse algum assunto maçônico. Respondi a poucas perguntas na aula. Observei o rosto do meu professor passar da amabilidade à severidade; ele esperava que eu não estivesse começando a ficar ocioso. Eu não conseguia reunir meus pensamentos dispersos. Eu mal tinha paciência com o trabalho sério da vida que, agora que se interpunha entre mim e meu desejo, me parecia brincadeira de criança, uma brincadeira de criança feia e monótona.
No sábado de manhã, lembrei meu tio de que gostaria de ir ao bazar à noite. Ele estava se afligindo no cabideiro, procurando a escova de chapéu, e me respondeu secamente:
“Sim, rapaz, eu sei.”
Como ele estava no corredor, não pude entrar na sala de estar e deitar-me junto à janela. Saí de casa de mau humor e caminhei lentamente em direção à escola. O ar estava impiedosamente frio e meu coração já me dava uma mágoa.
Quando cheguei em casa para jantar, meu tio ainda não havia chegado. Mesmo assim, ainda era cedo. Fiquei sentada encarando o relógio por um tempo e, quando o tique-taque começou a me irritar, saí do quarto. Subi as escadas e alcancei a parte superior da casa. Os cômodos altos, frios, vazios e sombrios me libertaram e fui de um cômodo para o outro cantando. Da janela da frente, vi minhas companheiras brincando lá embaixo, na rua. Seus gritos chegavam até mim fracos e indistintos e, encostando a testa no vidro frio, olhei para a casa escura onde ela morava. Talvez eu tenha ficado ali por uma hora, sem ver nada além da figura vestida de marrom projetada pela minha imaginação, discretamente iluminada pela luz do candeeiro no pescoço curvado, na mão sobre o corrimão e na barra do vestido.
Quando desci as escadas novamente, encontrei a Sra. Mercer sentada junto à lareira. Era uma senhora idosa e tagarela, viúva de um agiota, que colecionava selos usados para algum propósito piedoso. Tive que aturar as fofocas da mesa de chá. A refeição se prolongou por mais de uma hora e meu tio ainda não havia chegado. A Sra. Mercer se levantou para ir embora: ela lamentava não poder esperar mais, mas já passava das oito horas e ela não gostava de ficar fora até tarde, pois o ar da noite lhe fazia mal. Quando ela saiu, comecei a andar de um lado para o outro na sala, cerrando os punhos. Minha tia disse:
“Receio que você possa adiar seu bazar para esta noite de Nosso Senhor.”
Às nove horas, ouvi a chave do meu tio na porta do corredor. Ouvi-o falando sozinho e o cabideiro balançando quando recebeu o peso do seu sobretudo. Consegui interpretar esses sinais. Quando ele estava no meio do jantar, pedi-lhe dinheiro para ir ao bazar. Ele havia esquecido.
“As pessoas já estão na cama e acabaram de dormir pela primeira vez”, disse ele.
Eu não sorri. Minha tia disse a ele energicamente:
“Você não pode dar o dinheiro para ele e deixá-lo ir? Você já o reteve até tarde demais.”
Meu tio disse que lamentava muito ter esquecido. Disse que acreditava no velho ditado: "Só trabalho e nada de diversão faz de Jack um rapaz enfadonho". Perguntou-me para onde eu ia e, quando lhe disse pela segunda vez, perguntou-me se eu conhecia "A Despedida do Árabe ao Seu Cavalo". Quando saí da cozinha, ele estava prestes a recitar os versos iniciais da obra para a minha tia.
Apertei um florim na mão enquanto caminhava pela Rua Buckingham em direção à estação. A visão das ruas fervilhando de compradores e ofuscadas pelo gás me fez lembrar o propósito da minha viagem. Sentei-me em um vagão de terceira classe de um trem deserto. Após um atraso insuportável, o trem partiu lentamente da estação. Seguiu lentamente entre casas em ruínas e sobre o rio cintilante. Na Estação Westland Row, uma multidão se aglomerava nas portas do vagão; mas os carregadores os afastaram, dizendo que era um trem especial para o bazar. Permaneci sozinho no vagão vazio. Em poucos minutos, o trem parou ao lado de uma plataforma de madeira improvisada. Saí para a rua e vi pelo mostrador iluminado de um relógio que eram dez para as dez. Diante de mim, um grande edifício exibia o nome mágico.
Não encontrei nenhuma entrada de seis pence e, temendo que o bazar estivesse fechado, entrei rapidamente por uma catraca, entregando um xelim a um homem de aparência cansada. Encontrei-me num grande salão, com uma galeria que o circundava até a metade da altura. Quase todas as bancas estavam fechadas e a maior parte do salão estava às escuras. Reconheci um silêncio semelhante ao que paira numa igreja após a missa. Caminhei timidamente até o centro do bazar. Algumas pessoas estavam reunidas em torno das bancas que ainda estavam abertas. Diante de uma cortina, sobre a qual se lia "Café Chantant" em lâmpadas coloridas, dois homens contavam dinheiro numa bandeja. Ouvi o som das moedas caindo.
Com dificuldade em me lembrar do motivo da minha visita, dirigi-me a uma das bancas e examinei vasos de porcelana e jogos de chá floridos. À porta da banca, uma jovem conversava e ria com dois jovens cavalheiros. Notei o sotaque inglês deles e escutei vagamente a conversa.
“Oh, eu nunca disse tal coisa!”
“Ah, mas você fez sim!”
“Ah, mas eu não fiz isso!”
“Ela não disse isso?”
“Sim. Eu a ouvi.”
“Ah, tem uma… mentirosa!”
Observando-me, a jovem aproximou-se e perguntou-me se eu desejava comprar algo. O tom de sua voz não era encorajador; parecia que ela falava comigo por obrigação. Olhei humildemente para os grandes jarros que se erguiam como guardiões orientais de cada lado da entrada escura da barraca e murmurei:
“Não, obrigado.”
A jovem mudou a posição de um dos vasos e voltou para perto dos dois rapazes. Eles começaram a falar sobre o mesmo assunto. Uma ou duas vezes, a jovem olhou para mim por cima do ombro.
Demorei-me diante da sua banca, embora soubesse que a minha presença era inútil, para que o meu interesse pelos seus produtos parecesse o mais real possível. Depois, virei-me lentamente e caminhei pelo meio do bazar. Deixei as duas moedas de um pence caírem sobre a moeda de seis pence no meu bolso. Ouvi uma voz gritar de uma das extremidades da galeria que a luz tinha se apagado. A parte superior do salão estava agora completamente escura.
Olhando para a escuridão, vi-me como uma criatura dominada e ridicularizada pela vaidade; e meus olhos ardiam de angústia e raiva.
James Joyce. "Os dublinenses"
terça-feira, dezembro 2
Sociedade
O homem disse para o amigo:
– Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.
O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.
O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.
Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
– Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.
No caminho o homem resmunga:
– Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: – Que idiota.
– A casa é um ninho de pulgas.
– Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.
E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.
– Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.
O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.
O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.
Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
– Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.
No caminho o homem resmunga:
– Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: – Que idiota.
– A casa é um ninho de pulgas.
– Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.
E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.
Carlos Drummond de Andrade
O ano corre...
Quão rapidamente flui a corrente de janeiro a dezembro! Somos levados de roldão pela torrente das coisas que se tornaram tão familiares que não projetam nenhuma sombra.
Virginia Woolf, "As ondas"
‘Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar’
A vida é para nós o que concebemos nela. Para o rústico cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe ainda é pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida.
Isto não vem a propósito de nada.
Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa? Quantos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! César, salvo da morte pela generosidade de um pirata, manda crucificar esse pirata logo que, procurando-o bem, o consegue prender. Napoleão, fazendo seu testamento em Santa Helena, deixa um legado a um facínora que tentara assinar a Wellington. Ó grandezas iguais às da alma da vizinha vesga! Ó grandes homens da cozinheira de outro mundo! Quantos Césares fui, e sonho todavia ser.
Quantos Césares fui, mas não dos reais. Fui verdadeiramente imperial enquanto sonhei, e por isso nunca fui nada. Os meus exércitos foram derrotados, mas a derrota foi fofa, e ninguém morreu. Não perdi bandeiras. Não sonhei até ao ponto do exército, onde elas aparecessem ao meu olhar em cujo sonho há esquina. Quantos Césares fui, aqui mesmo, na Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação; mas os Césares que foram estão mortos, e a Rua dos Douradores, isto é, a Realidade, não os pode conhecer.
Atiro com a caixa de fósforos, que está vazia, para o abismo que a rua é para além do parapeito da minha janela alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto. Nitidamente, como se significasse qualquer coisa, a caixa de fósforos vazia soa na rua que [se] me declara deserta. Não há mais som nenhum, salvo os da cidade inteira. Sim, os da cidade dum domingo inteiro — tantos, sem se entenderem, e todos certos.
Quão pouco, no mundo real, forma o suporte das melhores meditações. O ter chegado tarde para almoçar, o terem-se acabado os fósforos, o ter eu atirado, individualmente, a caixa para a rua, mal-disposto por ter comido fora de horas, ser domingo a promessa aérea de um poente mau, o não ser ninguém no mundo, e toda a metafísica.
Mas quantos Césares fui!
Fernando Pessoa, "Livro do Desassossego"
Isto não vem a propósito de nada.
Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa? Quantos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! César, salvo da morte pela generosidade de um pirata, manda crucificar esse pirata logo que, procurando-o bem, o consegue prender. Napoleão, fazendo seu testamento em Santa Helena, deixa um legado a um facínora que tentara assinar a Wellington. Ó grandezas iguais às da alma da vizinha vesga! Ó grandes homens da cozinheira de outro mundo! Quantos Césares fui, e sonho todavia ser.
Quantos Césares fui, mas não dos reais. Fui verdadeiramente imperial enquanto sonhei, e por isso nunca fui nada. Os meus exércitos foram derrotados, mas a derrota foi fofa, e ninguém morreu. Não perdi bandeiras. Não sonhei até ao ponto do exército, onde elas aparecessem ao meu olhar em cujo sonho há esquina. Quantos Césares fui, aqui mesmo, na Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação; mas os Césares que foram estão mortos, e a Rua dos Douradores, isto é, a Realidade, não os pode conhecer.
Atiro com a caixa de fósforos, que está vazia, para o abismo que a rua é para além do parapeito da minha janela alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto. Nitidamente, como se significasse qualquer coisa, a caixa de fósforos vazia soa na rua que [se] me declara deserta. Não há mais som nenhum, salvo os da cidade inteira. Sim, os da cidade dum domingo inteiro — tantos, sem se entenderem, e todos certos.
Quão pouco, no mundo real, forma o suporte das melhores meditações. O ter chegado tarde para almoçar, o terem-se acabado os fósforos, o ter eu atirado, individualmente, a caixa para a rua, mal-disposto por ter comido fora de horas, ser domingo a promessa aérea de um poente mau, o não ser ninguém no mundo, e toda a metafísica.
Mas quantos Césares fui!
Fernando Pessoa, "Livro do Desassossego"
Alguma coisa urgentemente
Os primeiros anos de vida suscitaram em mim o gosto da aventura. O meu pai dizia não saber bem o porquê da existência e vivia mudando de trabalho, de mulher e de cidade. A característica mais marcante do meu pai era a sua rotatividade. Dizia-se filósofo sem livros, com uma única fortuna: o pensamento. Eu, no começo, achava meu pai tão-só um homem amargurado por ter sido abandonado por minha mãe quando eu era de colo. Morávamos então no alto da Rua Ramiro Barcelos, em Porto Alegre, meu pai me levava a passear todas manhãs na Praça Júlio de Castilhos e me ensinava os nomes das árvores, eu não gostava de ficar só nos nomes, gostava de saber as características de cada vegetal, a região de origem. Ele me dizia que o mundo não era só aquelas plantas, era também as pessoas que passavam e as que ficavam e que cada um tem o seu drama. Eu lhe pedia colo. Ele me dava e assobiava uma canção medieval que afirmava ser a sua preferida. No colo dele eu balbuciava uns pensamentos perigosos:
— Quando é que você vai morrer?
— Não vou te deixar sozinho, filho!
Falava-me com o olhar visivelmente emocionado e contava que antes me ensinaria a ler e escrever. Ele fazia questão de esquecer que eu sabia de tudo o que se passava com ele. Pra que ler? — eu lhe perguntava. Pra descrever a forma desta árvore — respondia-me um pouco irritado com minha pergunta. Mas logo se apaziguava.
— Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo.
No final de 1969 meu pai foi preso no interior do Paraná. (Dizem que passava armas a um grupo não sei de que espécie.) Tinha na época uma casa de caça e pesca em Ponta Grossa e já não me levava a passear.
No dia em que ele foi preso, eu fui arrastado para fora da loja por uma vizinha de pele muito clara, que me disse que eu ficaria uns dias na casa dela, que o meu pai iria viajar. Não acreditei em nada mas me fiz de crédulo como convinha a uma criança. Pois o que aconteceria se eu lhe dissesse que tudo aquilo era mentira? Como lidar com uma criança que sabe?
Puseram-me num colégio interno no interior de São Paulo. O padre-diretor me olhou e afirmou que lá eu seria feliz.
— Eu não gosto daqui.
— Você vai se acostumar e até gostar.
Os colegas me ensinaram a jogar futebol, a me masturbar e a roubar a comida dos padres. Eu ficava de pau duro e mostrava aos colegas. Mostrava as maçãs e os doces do roubo. Contava do meu pai. Um deles me odiava. O meu pai foi assassinado, me dizia ele com ódio nos olhos. O meu pai era bandido, ele contava espumando o coração.
Eu me calava. Pois se referir ao meu pai presumia um conhecimento que eu não tinha. Uma carta chegou dele. Mas o padre-diretor não me deixou lê-la, chamou-me no seu gabinete e contou que o meu pai ia bem.
— Ele vai bem.
Eu agradeci como normalmente fazia em qualquer contato com o padre-diretor e saí dizendo no mais silencioso de mim:
— Ele vai bem.
O menino que me odiava aproximou-se e falou que o pai dele tinha levado dezessete tiros.
Nas aulas de religião o padre Amâncio nos ensinava a rezar o terço e a repetir jaculatórias.
— Salve Maria! — ele exclamava a cada início de aula.
— Salve Maria! — os meninos respondiam em uníssono.
Quando cresci meu pai veio me buscar e ele estava sem um braço. O padre-diretor me perguntou:
— Você quer ir?
Olhei para meu pai e disse que eu já sabia ler e escrever.
— Então você saberá de tudo um dia — ele falou.
O menino que me odiava ficou na porta do colégio quando da nossa partida. Ele estava com o seu uniforme bem lavado e passado.
Na estrada para São Paulo paramos num restaurante. Eu pedi um conhaque e meu pai não se espantou. Lia um jornal.
Em São Paulo fomos para um quarto de pensão onde não recebíamos visitas.
— Vamos para o Rio — ele me comunicou sentado na cama e com o braço que lhe restava sobre as pernas.
No Rio fomos para um apartamento na Avenida Atlântica. De amigos , ele comentou. Mas embora o apartamento fosse bem mobiliado, ele vivia vazio.
— Eu quero saber — eu disse para o meu pai.
— Pode ser perigoso — ele respondeu.
E desliguei a televisão como se pronto para ouvir. Ele disse não. Ainda é cedo. E eu já tinha perdido a capacidade de chorar.
Eu procurei esquecer. Meu pai me pôs num colégio em Copacabana e comecei a crescer como tantos adolescentes do Rio. Comia a empregada do Alfredinho, um amigo do colégio, e, na praia, precisava sentar às vezes rapidamente porque era comum ficar de pau duro à passagem de alguém. Fingia então que observava o mar, a performance de algum surfista.
Não gostava de constatar o quanto me atormentavam algumas coisas. Até meu pai desaparecer novamente. Fiquei sozinho no apartamento da Avenida Atlântica sem que ninguém tomasse conhecimento. E eu já tinha me acostumado com o mistério daquele apartamento. Já não queria saber a quem pertencia, porque vivia vazio. O segredo alimentava o meu silêncio. E eu precisava desse silêncio para continuar ali. Ah, me esqueci de dizer que meu pai tinha deixado algum dinheiro no cofre. Esse dinheiro foi o suficiente para sete meses. Gastava pouco e procurava não pensar no que aconteceria quando ele acabasse. Sabia que estava sozinho, com o único dinheiro acabando, mas era preciso preservar aquele ar folgado dos garotos da minha idade, falsificar a assinatura do meu pai sem remorsos a cada exigência do colégio.
Eu não dava bola para a limpeza do apartamento. Ele estava bem sujo. Mas eu ficava tão pouco em casa que não dava importância à sujeira, aos lençóis encardidos. Tinha bons amigos no colégio, duas ou três amigas que me deixavam a mão livre para passá-la onde eu bem entendesse.
Mas o dinheiro tinha acabado e eu estava caminhando pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana tarde da noite, quando notei um grupo de garotões parados na esquina da Barão de Ipanema, encostados num carro e enrolando um baseado. Quando passei, eles me ofereceram. Um tapinha? Eu aceitei. Um deles me disse olha ali, não perde essa, cara! Olhei para onde ele tinha apontado e vi um Mercedes parado na esquina com um homem de uns trinta anos dentro. Vai lá, eles me empurraram. E eu fui.
— Quer entrar? — o homem me disse.
Eu manjei tudo e pensei que estava sem dinheiro.
— Trezentas pratas — falei.
Ele abriu a porta e disse entra, o carro subiu a Niemeyer, não havia ninguém no morro em que o homem parou. Uma fita tocava acho que uma música clássica e o homem me disse que era de São Paulo. Me ofereceu cigarro, chiclete e começou a tirar a minha roupa. Eu pedi antes o dinheiro. Ele me deu as três notas de cem abertas, novinhas. E eu nu e o homem começando a pegar em mim, me mordia de ficar marca, quase me tira um pedaço da boca. Eu tinha um bom físico e isso excitava ele, deixava o homem louco. A fita tinha terminado e só se ouvia um grilo.
— Vamos — disse o homem ligando o carro.
Eu tinha gozado e precisei me limpar com a sunga.
No dia seguinte meu pai voltou, apareceu na porta muito magro, sem dois dentes. Resolvi contar:
— Eu ontem me prostituí, fui com um homem em troca de trezentas pratas.
Meu pai me olhou sem surpresas e disse que eu procurasse fazer outra história da minha vida. Ele então sentou-se e foi incisivo:
— Eu vim para morrer. A minha morte vai ser um pouco badalada pelos jornais, a polícia me odeia, há anos me procura. Vão te descobrir mas não dê uma única declaração, diga que não sabe de nada. O que e verdade.
— E se me torturarem? — perguntei.
— Você é menor e eles estão precisando evitar escândalos.
Eu fui para a janela pensando que ia chorar, mas só consegui ficar olhando o mar e sentir que precisava fazer alguma coisa urgentemente. Virei a cabeça e vi que meu pai dormia. Aliás, não foi bem isso o que pensei, pensei que ele já estivesse morto e fui correndo segurar o seu único pulso.
O pulso ainda tinha vida. Eu preciso fazer alguma coisa urgentemente, a minha cabeça martelava. É que eu não tinha gostado de ir com aquele homem na noite anterior, meu pai ia morrer e eu não tinha um puto centavo. De onde sairia a minha sobrevivência? Então pensei em denunciar meu pai para a polícia para ser recebido pelos jornais e ganhar casa e comida em algum orfanato, ou na casa de alguma família. Mas não, isso eu não fiz porque gostava do meu pai e não estava interessado em morar em orfanato ou com alguma família, e eu tinha pena do meu pai deitado ali no sofá, dormindo de tão fraco. Mas precisava me comunicar com alguém, contar o que estava acontecendo. Mas quem?
Comecei a faltar às aulas e ficava andando pela praia, pensando o que fazer com meu pai que ficava em casa dormindo, feio e velho. E eu não tinha arranjado mais um puto centavo. Ainda bem que tinha um amigo vendedor daquelas carrocinhas da Geneal que me quebrava o galho com um cachorro-quente. Eu dizia bota bastante mostarda, esquenta bem esse pão, mete molho. Ele obedecia como se me quisesse bem. Mas eu não conseguia contar para ele o que estava acontecendo comigo. Eu apenas comentava com ele a bunda das mulheres ou alguma cicatriz numa barriga. É cesariana, ele ensinava. E eu fingia que nunca tinha ouvido falar em cesariana, e aguçava seu prazer de ensinar o que era cesariana. Um dia ele me perguntou:
— Você tem quantos irmãos?
Eu respondi sete.
— O teu pai manda brasa, hein?
Fiquei pensando no que responder, talvez fosse a ocasião de contar tudo pra ele, admitir que eu precisava de ajuda. Mas o que um vendedor da Geneal poderia fazer por mim senão contar para a polícia? Então me calei e fui embora.
Quando cheguei em casa entendi de vez que meu pai era um moribundo. Ele já não acordava, tinha certos espasmos, engrolava a língua e eu assistia. O apartamento nessa época tinha um cheiro ruim, de coisa estragada. Mas dessa vez eu não fiquei assistindo e procurei ajudar o velho. Levantei a cabeça dele, botei um travesseiro embaixo e tentei conversar com ele.
— O que você está sentindo? — perguntei.
— Já não sinto nada — ele respondeu com uma dificuldade que metia medo.
— Dói?
— Já não sinto dor nenhuma.
De vez em quando lhe trazia um cachorro-quente que meu amigo da Geneal me dava, mas meu pai repelia qualquer coisa e expulsava os pedaços de pão e salsicha para o canto da boca. Numa dessas ocasiões em que eu limpava os restos de pão e salsicha da sua boca com um pano de prato a campainha tocou. A campainha tocou. Fui abrir a porta com muito medo, com o pano de prato ainda na mão. Era o Alfredinho.
— A diretora quer saber por que você nunca mais apareceu no colégio — ele perguntou.
Falei pra ele entrar e disse que eu estava doente, com a garganta inflamada, mas que eu voltaria pro colégio no dia seguinte porque já estava quase bom. Alfredinho sentiu o cheiro ruim da casa, tenho certeza, mas fez questão de não demonstrar nada.
Quando ele sentou no sofá e que eu notei como o sofá estava puído e que Alfredinho sentava nele com certo cuidado, como se o sofá fosse despencar debaixo da bunda, mas ele disfarçava e fazia que não notava nada de anormal, nem a barata que descia a parede à direita, nem os ruídos do meu pai que às vezes se debatia e gemia no quarto ao lado. Eu sentei na poltrona e fiquei falando tudo que me vinha à cabeça para distraí-lo dos ruídos do meu pai, da barata na parede, do puído do sofá, da sujeira e do cheiro do apartamento, falei que nos dias da doença eu lia na cama o dia inteiro umas revistinhas de sacanagem, eram dinamarquesas as tais revistinhas, e sabe como é que eu consegui essas revistinhas?, roubei no escritório do meu pai, estavam escondidas na gaveta da mesa dele, não te mostro porque emprestei pra um amigo meu, um sacana que trabalha numa carrocinha da Geneal aqui na praia, ele mostrou pra um amigo dele que bateu uma punheta com a revistinha na mão, tem uma mulher com as pernas assim e a câmera pega a foto bem daqui, bem daqui cara, ó como os caras tiraram a foto da mulher, ela assim e a câmera pega bem desse ângulo aqui, não é de bater uma punheta mesmo?, a câmera pertinho assim e a mulher nua e com as pernas desse jeito, não tou mentindo não cara, você vai ver, um dia você vai ver, só que agora a revistinha não tá comigo, por isso que eu digo que ficar doente de vez em quando é uma boa, eu o dia inteiro deitado na cama lendo revistinha de sacanagem, sem ninguém pra me aporrinhar com aula e trabalho de grupo, só eu e as minhas revistinhas, você precisava ver, cara, você também ia curtir ficar doente nessa de revistinha de sacanagem, ninguém pra me encher o saco, ninguém cara, ninguém.
Aí eu parei de falar e o Alfredinho me olhava como se eu estivesse falando coisas que assustassem ele, ficou me olhando com uma cara de babaca, meio assim desconfiado, e nem sei bem o que passou pela cabeça dele quando meu pai lá no quarto me chamou, era a primeira vez que meu pai me chamava pelo nome, eu mesmo levei um susto de ouvir meu pai me chamar pelo meu nome, e me levantei meio apavorado porque não queria que ninguém soubesse do meu pai, do meu segredo, da minha vida, eu queria que o Alfredinho fosse embora e que não voltasse nunca mais, então eu me levantei e disse que tinha que fazer uns negócios, e ele foi caminhando de costas em direção à porta, como se estivesse com medo de mim, e eu dizendo que amanhã eu vou aparecer no colégio, pode dizer pra diretora que amanhã eu converso com ela, e o meu pai me chamou de novo com sua voz de agonizante, o meu pai me chamava pela primeira vez pelo meu nome, e eu disse tchau até amanhã, e o Alfredinho disse tchau até amanhã, e eu continuava com o pano de prato na mão e fechei a porta bem ligeiro porque não agüentava mais o Alfredinho ali na minha frente não dizendo nem uma palavra, e fui correndo pro quarto e vi que o meu pai estava com os olhos duros olhando pra mim, e eu fiquei parado na porta do quarto pensando que eu precisava fazer alguma coisa urgentemente.
João Gilberto Noll, “Os cem melhores contos brasileiros do século”
— Quando é que você vai morrer?
— Não vou te deixar sozinho, filho!
Falava-me com o olhar visivelmente emocionado e contava que antes me ensinaria a ler e escrever. Ele fazia questão de esquecer que eu sabia de tudo o que se passava com ele. Pra que ler? — eu lhe perguntava. Pra descrever a forma desta árvore — respondia-me um pouco irritado com minha pergunta. Mas logo se apaziguava.
— Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo.
No final de 1969 meu pai foi preso no interior do Paraná. (Dizem que passava armas a um grupo não sei de que espécie.) Tinha na época uma casa de caça e pesca em Ponta Grossa e já não me levava a passear.
No dia em que ele foi preso, eu fui arrastado para fora da loja por uma vizinha de pele muito clara, que me disse que eu ficaria uns dias na casa dela, que o meu pai iria viajar. Não acreditei em nada mas me fiz de crédulo como convinha a uma criança. Pois o que aconteceria se eu lhe dissesse que tudo aquilo era mentira? Como lidar com uma criança que sabe?
Puseram-me num colégio interno no interior de São Paulo. O padre-diretor me olhou e afirmou que lá eu seria feliz.
— Eu não gosto daqui.
— Você vai se acostumar e até gostar.
Os colegas me ensinaram a jogar futebol, a me masturbar e a roubar a comida dos padres. Eu ficava de pau duro e mostrava aos colegas. Mostrava as maçãs e os doces do roubo. Contava do meu pai. Um deles me odiava. O meu pai foi assassinado, me dizia ele com ódio nos olhos. O meu pai era bandido, ele contava espumando o coração.
Eu me calava. Pois se referir ao meu pai presumia um conhecimento que eu não tinha. Uma carta chegou dele. Mas o padre-diretor não me deixou lê-la, chamou-me no seu gabinete e contou que o meu pai ia bem.
— Ele vai bem.
Eu agradeci como normalmente fazia em qualquer contato com o padre-diretor e saí dizendo no mais silencioso de mim:
— Ele vai bem.
O menino que me odiava aproximou-se e falou que o pai dele tinha levado dezessete tiros.
Nas aulas de religião o padre Amâncio nos ensinava a rezar o terço e a repetir jaculatórias.
— Salve Maria! — ele exclamava a cada início de aula.
— Salve Maria! — os meninos respondiam em uníssono.
Quando cresci meu pai veio me buscar e ele estava sem um braço. O padre-diretor me perguntou:
— Você quer ir?
Olhei para meu pai e disse que eu já sabia ler e escrever.
— Então você saberá de tudo um dia — ele falou.
O menino que me odiava ficou na porta do colégio quando da nossa partida. Ele estava com o seu uniforme bem lavado e passado.
Na estrada para São Paulo paramos num restaurante. Eu pedi um conhaque e meu pai não se espantou. Lia um jornal.
Em São Paulo fomos para um quarto de pensão onde não recebíamos visitas.
— Vamos para o Rio — ele me comunicou sentado na cama e com o braço que lhe restava sobre as pernas.
No Rio fomos para um apartamento na Avenida Atlântica. De amigos , ele comentou. Mas embora o apartamento fosse bem mobiliado, ele vivia vazio.
— Eu quero saber — eu disse para o meu pai.
— Pode ser perigoso — ele respondeu.
E desliguei a televisão como se pronto para ouvir. Ele disse não. Ainda é cedo. E eu já tinha perdido a capacidade de chorar.
Eu procurei esquecer. Meu pai me pôs num colégio em Copacabana e comecei a crescer como tantos adolescentes do Rio. Comia a empregada do Alfredinho, um amigo do colégio, e, na praia, precisava sentar às vezes rapidamente porque era comum ficar de pau duro à passagem de alguém. Fingia então que observava o mar, a performance de algum surfista.
Não gostava de constatar o quanto me atormentavam algumas coisas. Até meu pai desaparecer novamente. Fiquei sozinho no apartamento da Avenida Atlântica sem que ninguém tomasse conhecimento. E eu já tinha me acostumado com o mistério daquele apartamento. Já não queria saber a quem pertencia, porque vivia vazio. O segredo alimentava o meu silêncio. E eu precisava desse silêncio para continuar ali. Ah, me esqueci de dizer que meu pai tinha deixado algum dinheiro no cofre. Esse dinheiro foi o suficiente para sete meses. Gastava pouco e procurava não pensar no que aconteceria quando ele acabasse. Sabia que estava sozinho, com o único dinheiro acabando, mas era preciso preservar aquele ar folgado dos garotos da minha idade, falsificar a assinatura do meu pai sem remorsos a cada exigência do colégio.
Eu não dava bola para a limpeza do apartamento. Ele estava bem sujo. Mas eu ficava tão pouco em casa que não dava importância à sujeira, aos lençóis encardidos. Tinha bons amigos no colégio, duas ou três amigas que me deixavam a mão livre para passá-la onde eu bem entendesse.
Mas o dinheiro tinha acabado e eu estava caminhando pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana tarde da noite, quando notei um grupo de garotões parados na esquina da Barão de Ipanema, encostados num carro e enrolando um baseado. Quando passei, eles me ofereceram. Um tapinha? Eu aceitei. Um deles me disse olha ali, não perde essa, cara! Olhei para onde ele tinha apontado e vi um Mercedes parado na esquina com um homem de uns trinta anos dentro. Vai lá, eles me empurraram. E eu fui.
— Quer entrar? — o homem me disse.
Eu manjei tudo e pensei que estava sem dinheiro.
— Trezentas pratas — falei.
Ele abriu a porta e disse entra, o carro subiu a Niemeyer, não havia ninguém no morro em que o homem parou. Uma fita tocava acho que uma música clássica e o homem me disse que era de São Paulo. Me ofereceu cigarro, chiclete e começou a tirar a minha roupa. Eu pedi antes o dinheiro. Ele me deu as três notas de cem abertas, novinhas. E eu nu e o homem começando a pegar em mim, me mordia de ficar marca, quase me tira um pedaço da boca. Eu tinha um bom físico e isso excitava ele, deixava o homem louco. A fita tinha terminado e só se ouvia um grilo.
— Vamos — disse o homem ligando o carro.
Eu tinha gozado e precisei me limpar com a sunga.
No dia seguinte meu pai voltou, apareceu na porta muito magro, sem dois dentes. Resolvi contar:
— Eu ontem me prostituí, fui com um homem em troca de trezentas pratas.
Meu pai me olhou sem surpresas e disse que eu procurasse fazer outra história da minha vida. Ele então sentou-se e foi incisivo:
— Eu vim para morrer. A minha morte vai ser um pouco badalada pelos jornais, a polícia me odeia, há anos me procura. Vão te descobrir mas não dê uma única declaração, diga que não sabe de nada. O que e verdade.
— E se me torturarem? — perguntei.
— Você é menor e eles estão precisando evitar escândalos.
Eu fui para a janela pensando que ia chorar, mas só consegui ficar olhando o mar e sentir que precisava fazer alguma coisa urgentemente. Virei a cabeça e vi que meu pai dormia. Aliás, não foi bem isso o que pensei, pensei que ele já estivesse morto e fui correndo segurar o seu único pulso.
O pulso ainda tinha vida. Eu preciso fazer alguma coisa urgentemente, a minha cabeça martelava. É que eu não tinha gostado de ir com aquele homem na noite anterior, meu pai ia morrer e eu não tinha um puto centavo. De onde sairia a minha sobrevivência? Então pensei em denunciar meu pai para a polícia para ser recebido pelos jornais e ganhar casa e comida em algum orfanato, ou na casa de alguma família. Mas não, isso eu não fiz porque gostava do meu pai e não estava interessado em morar em orfanato ou com alguma família, e eu tinha pena do meu pai deitado ali no sofá, dormindo de tão fraco. Mas precisava me comunicar com alguém, contar o que estava acontecendo. Mas quem?
Comecei a faltar às aulas e ficava andando pela praia, pensando o que fazer com meu pai que ficava em casa dormindo, feio e velho. E eu não tinha arranjado mais um puto centavo. Ainda bem que tinha um amigo vendedor daquelas carrocinhas da Geneal que me quebrava o galho com um cachorro-quente. Eu dizia bota bastante mostarda, esquenta bem esse pão, mete molho. Ele obedecia como se me quisesse bem. Mas eu não conseguia contar para ele o que estava acontecendo comigo. Eu apenas comentava com ele a bunda das mulheres ou alguma cicatriz numa barriga. É cesariana, ele ensinava. E eu fingia que nunca tinha ouvido falar em cesariana, e aguçava seu prazer de ensinar o que era cesariana. Um dia ele me perguntou:
— Você tem quantos irmãos?
Eu respondi sete.
— O teu pai manda brasa, hein?
Fiquei pensando no que responder, talvez fosse a ocasião de contar tudo pra ele, admitir que eu precisava de ajuda. Mas o que um vendedor da Geneal poderia fazer por mim senão contar para a polícia? Então me calei e fui embora.
Quando cheguei em casa entendi de vez que meu pai era um moribundo. Ele já não acordava, tinha certos espasmos, engrolava a língua e eu assistia. O apartamento nessa época tinha um cheiro ruim, de coisa estragada. Mas dessa vez eu não fiquei assistindo e procurei ajudar o velho. Levantei a cabeça dele, botei um travesseiro embaixo e tentei conversar com ele.
— O que você está sentindo? — perguntei.
— Já não sinto nada — ele respondeu com uma dificuldade que metia medo.
— Dói?
— Já não sinto dor nenhuma.
De vez em quando lhe trazia um cachorro-quente que meu amigo da Geneal me dava, mas meu pai repelia qualquer coisa e expulsava os pedaços de pão e salsicha para o canto da boca. Numa dessas ocasiões em que eu limpava os restos de pão e salsicha da sua boca com um pano de prato a campainha tocou. A campainha tocou. Fui abrir a porta com muito medo, com o pano de prato ainda na mão. Era o Alfredinho.
— A diretora quer saber por que você nunca mais apareceu no colégio — ele perguntou.
Falei pra ele entrar e disse que eu estava doente, com a garganta inflamada, mas que eu voltaria pro colégio no dia seguinte porque já estava quase bom. Alfredinho sentiu o cheiro ruim da casa, tenho certeza, mas fez questão de não demonstrar nada.
Quando ele sentou no sofá e que eu notei como o sofá estava puído e que Alfredinho sentava nele com certo cuidado, como se o sofá fosse despencar debaixo da bunda, mas ele disfarçava e fazia que não notava nada de anormal, nem a barata que descia a parede à direita, nem os ruídos do meu pai que às vezes se debatia e gemia no quarto ao lado. Eu sentei na poltrona e fiquei falando tudo que me vinha à cabeça para distraí-lo dos ruídos do meu pai, da barata na parede, do puído do sofá, da sujeira e do cheiro do apartamento, falei que nos dias da doença eu lia na cama o dia inteiro umas revistinhas de sacanagem, eram dinamarquesas as tais revistinhas, e sabe como é que eu consegui essas revistinhas?, roubei no escritório do meu pai, estavam escondidas na gaveta da mesa dele, não te mostro porque emprestei pra um amigo meu, um sacana que trabalha numa carrocinha da Geneal aqui na praia, ele mostrou pra um amigo dele que bateu uma punheta com a revistinha na mão, tem uma mulher com as pernas assim e a câmera pega a foto bem daqui, bem daqui cara, ó como os caras tiraram a foto da mulher, ela assim e a câmera pega bem desse ângulo aqui, não é de bater uma punheta mesmo?, a câmera pertinho assim e a mulher nua e com as pernas desse jeito, não tou mentindo não cara, você vai ver, um dia você vai ver, só que agora a revistinha não tá comigo, por isso que eu digo que ficar doente de vez em quando é uma boa, eu o dia inteiro deitado na cama lendo revistinha de sacanagem, sem ninguém pra me aporrinhar com aula e trabalho de grupo, só eu e as minhas revistinhas, você precisava ver, cara, você também ia curtir ficar doente nessa de revistinha de sacanagem, ninguém pra me encher o saco, ninguém cara, ninguém.
Aí eu parei de falar e o Alfredinho me olhava como se eu estivesse falando coisas que assustassem ele, ficou me olhando com uma cara de babaca, meio assim desconfiado, e nem sei bem o que passou pela cabeça dele quando meu pai lá no quarto me chamou, era a primeira vez que meu pai me chamava pelo nome, eu mesmo levei um susto de ouvir meu pai me chamar pelo meu nome, e me levantei meio apavorado porque não queria que ninguém soubesse do meu pai, do meu segredo, da minha vida, eu queria que o Alfredinho fosse embora e que não voltasse nunca mais, então eu me levantei e disse que tinha que fazer uns negócios, e ele foi caminhando de costas em direção à porta, como se estivesse com medo de mim, e eu dizendo que amanhã eu vou aparecer no colégio, pode dizer pra diretora que amanhã eu converso com ela, e o meu pai me chamou de novo com sua voz de agonizante, o meu pai me chamava pela primeira vez pelo meu nome, e eu disse tchau até amanhã, e o Alfredinho disse tchau até amanhã, e eu continuava com o pano de prato na mão e fechei a porta bem ligeiro porque não agüentava mais o Alfredinho ali na minha frente não dizendo nem uma palavra, e fui correndo pro quarto e vi que o meu pai estava com os olhos duros olhando pra mim, e eu fiquei parado na porta do quarto pensando que eu precisava fazer alguma coisa urgentemente.
João Gilberto Noll, “Os cem melhores contos brasileiros do século”
segunda-feira, dezembro 1
Macacos
Da primeira vez que tivemos em casa um mico foi perto do Ano-Novo. Estávamos sem água e sem empregada, fazia-se fila para carne, o calor rebentara – e foi quando, muda de perplexidade, vi o presente entrar em casa, já comendo banana, já examinando tudo com grande rapidez e um longo rabo. Mais parecia um macacão ainda não crescido, suas potencialidades eram tremendas. Subia pela roupa estendida na corda, de onde dava gritos de marinheiro, e jogava cascas de banana onde caíssem. E eu exausta. Quando me esquecia e entrava distraída na área de serviço, o grande sobressalto: aquele homem alegre ali. Meu menino menor sabia, antes de eu saber, que eu me desfaria do gorila: “E se eu prometer que um dia o macaco vai adoecer e morrer, você deixa ele ficar? e se você soubesse que de qualquer jeito ele um dia vai cair da janela e morrer lá embaixo?” Meus sentimentos desviavam o olhar. A inconsciência feliz e imunda do macacão-pequeno tornava-me responsável pelo seu destino, já que ele próprio não aceitava culpas. Uma amiga entendeu de que amargura era feita a minha aceitação, de que crimes se alimentava meu ar sonhador, e rudemente me salvou: meninos de morro apareceram numa zoada feliz, levaram o homem que ria, e no desvitalizado Ano-Novo eu pelo menos ganhei uma casa sem macaco.
Um ano depois, acabava eu de ter uma alegria, quando ali em Copacabana vi o agrupamento. Um homem vendia macaquinhos. Pensei nos meninos, nas alegrias que eles me davam de graça, sem nada a ver com as preocupações que também de graça me davam, imaginei uma cadeia de alegria: “Quem receber esta, que a passe a outro”, e outro para outro, como o frêmito num rastro de pólvora. E ali mesmo comprei a que se chamaria Lisette.
Quase cabia na mão. Tinha saia, brincos, colar e pulseira de baiana. E um ar de imigrante que ainda desembarca com o traje típico de sua terra. De imigrante também eram os olhos redondos.
Quanto a essa, era mulher em miniatura. Três dias esteve conosco. Era de uma tal delicadeza de ossos. De uma tal extrema doçura. Mais que os olhos, o olhar era arredondado.
Cada movimento, e os brincos estremeciam; a saia sempre arrumada, o colar vermelho brilhante.
Dormia muito, mas para comer era sóbria e cansada. Seus raros carinhos eram só mordida leve que não deixava marca.
No terceiro dia estávamos na área de serviço admirando Lisette e o modo como ela era nossa. “Um pouco suave demais”, pensei com saudade do meu gorila. E de repente foi meu coração respondendo com muita dureza: “Mas isso não é doçura. Isto é morte”. A secura da comunicação deixou-me quieta. Depois eu disse aos meninos: “Lisette está morrendo”.
Olhando-a, percebi então até que ponto de amor já tínhamos ido. Enrolei Lisette num guardanapo, fui com os meninos para o primeiro pronto-socorro, onde o médico não podia atender porque operava de urgência um cachorro. Outro táxi. – Lisette pensa que está passeando, mamãe – outro hospital. Lá deram-lhe oxigênio.
E com o sopro de vida, subitamente revelou-se uma Lisette que desconhecíamos. De olhos muito menos redondos, mais secretos, mais aos risos e na cara prognata e ordinária uma certa altivez irônica; um pouco mais de oxigênio, e deu-lhe uma vontade de falar que ela mal agüentava ser macaca; era, e muito teria a contar. Breve, porém, sucumbia de novo, exausta. Mais oxigênio e dessa vez uma injeção de soro a cuja picada ela reagiu com um tapinha colérico, de pulseira tilintando. O enfermeiro sorriu: “Lisette, meu bem, sossega!”
O diagnóstico: não ia viver, a menos que tivesse oxigênio à mão e, mesmo assim, improvável. “Não se compra macaco na rua”, censurou-me ele abanando a cabeça, “às vezes já vem doente”. Não, tinha-se que comprar macaca certa, saber da origem, ter pelo menos cinco anos de garantia do amor, saber do que fizera ou não fizera, como se fosse para casar. Resolvi um instante com os meninos. E disse para o enfermeiro: “O senhor está gostando muito de Lisette. Pois se o senhor deixar ela passar uns dias perto do oxigênio, no que ela ficar boa, ela é sua”. Mas ele pensava. “Lisette é bonita!”, implorei eu. “É linda”, concordou ele pensativo. Depois ele suspirou e disse: “Se eu curar Lisette, ela é sua”. Fomos embora, de guardanapo vazio.
No dia seguinte telefonaram, e eu avisei aos meninos que Lisette morrera. O menor me perguntou: “Você acha que ela morreu de brincos?” Eu disse que sim. Uma semana depois o mais velho me disse: “Você parece tanto com Lisette!” “Eu também gosto de você”, respondi.
Clarice Lispector, "Felicidade clandestina"
Um ano depois, acabava eu de ter uma alegria, quando ali em Copacabana vi o agrupamento. Um homem vendia macaquinhos. Pensei nos meninos, nas alegrias que eles me davam de graça, sem nada a ver com as preocupações que também de graça me davam, imaginei uma cadeia de alegria: “Quem receber esta, que a passe a outro”, e outro para outro, como o frêmito num rastro de pólvora. E ali mesmo comprei a que se chamaria Lisette.
Quase cabia na mão. Tinha saia, brincos, colar e pulseira de baiana. E um ar de imigrante que ainda desembarca com o traje típico de sua terra. De imigrante também eram os olhos redondos.
Quanto a essa, era mulher em miniatura. Três dias esteve conosco. Era de uma tal delicadeza de ossos. De uma tal extrema doçura. Mais que os olhos, o olhar era arredondado.
Cada movimento, e os brincos estremeciam; a saia sempre arrumada, o colar vermelho brilhante.
Dormia muito, mas para comer era sóbria e cansada. Seus raros carinhos eram só mordida leve que não deixava marca.
No terceiro dia estávamos na área de serviço admirando Lisette e o modo como ela era nossa. “Um pouco suave demais”, pensei com saudade do meu gorila. E de repente foi meu coração respondendo com muita dureza: “Mas isso não é doçura. Isto é morte”. A secura da comunicação deixou-me quieta. Depois eu disse aos meninos: “Lisette está morrendo”.
Olhando-a, percebi então até que ponto de amor já tínhamos ido. Enrolei Lisette num guardanapo, fui com os meninos para o primeiro pronto-socorro, onde o médico não podia atender porque operava de urgência um cachorro. Outro táxi. – Lisette pensa que está passeando, mamãe – outro hospital. Lá deram-lhe oxigênio.
E com o sopro de vida, subitamente revelou-se uma Lisette que desconhecíamos. De olhos muito menos redondos, mais secretos, mais aos risos e na cara prognata e ordinária uma certa altivez irônica; um pouco mais de oxigênio, e deu-lhe uma vontade de falar que ela mal agüentava ser macaca; era, e muito teria a contar. Breve, porém, sucumbia de novo, exausta. Mais oxigênio e dessa vez uma injeção de soro a cuja picada ela reagiu com um tapinha colérico, de pulseira tilintando. O enfermeiro sorriu: “Lisette, meu bem, sossega!”
O diagnóstico: não ia viver, a menos que tivesse oxigênio à mão e, mesmo assim, improvável. “Não se compra macaco na rua”, censurou-me ele abanando a cabeça, “às vezes já vem doente”. Não, tinha-se que comprar macaca certa, saber da origem, ter pelo menos cinco anos de garantia do amor, saber do que fizera ou não fizera, como se fosse para casar. Resolvi um instante com os meninos. E disse para o enfermeiro: “O senhor está gostando muito de Lisette. Pois se o senhor deixar ela passar uns dias perto do oxigênio, no que ela ficar boa, ela é sua”. Mas ele pensava. “Lisette é bonita!”, implorei eu. “É linda”, concordou ele pensativo. Depois ele suspirou e disse: “Se eu curar Lisette, ela é sua”. Fomos embora, de guardanapo vazio.
No dia seguinte telefonaram, e eu avisei aos meninos que Lisette morrera. O menor me perguntou: “Você acha que ela morreu de brincos?” Eu disse que sim. Uma semana depois o mais velho me disse: “Você parece tanto com Lisette!” “Eu também gosto de você”, respondi.
Clarice Lispector, "Felicidade clandestina"
Chove!
Chove...
Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?
Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.
Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?
Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.
José Gomes Ferreira
O relógio de ouro
Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado, como ele, do lugar e da situação.
Clarinha não estava na alcova quando Luís Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem corresponder muito nem pouco ao ósculo com que o marido a cumprimentou logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro aberto, e os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relógio.
Luís Negreiros lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me atrevo a descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também não eram de pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís Negreiros gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido; mas gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis ou cronométricas, e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís Negreiros.
Por esse motivo, e outros que são óbvios, compreenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sobre uma cadeira, puxasse raivosamente os cabelos, batesse com o pé no chão, e lançasse o relógio e a corrente para cima da mesa. Terminada esta primeira manifestação de furor, Luís Negreiros pegou de novo nos fatais objetos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante algum tempo e refletiu sobre o caso, interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de Clarinha qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.
Foi ter com ela.
Clarinha acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com o ar indiferente e tranqüilo de quem não pensa em decifrar charadas de cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dois reluzentes punhais.
— Que tens? perguntou a moça com a voz doce e meiga que toda a gente concordava em lhe achar.
Luís Negreiros não respondeu à interrogação da mulher; olhou algum tempo para ela; depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabelos, por modo que a moça de novo lhe perguntou:
— Que tens?
Luís Negreiros parou defronte dela.
— Que é isto? disse ele tirando do bolso o fatal relógio e apresentando-lho diante dos olhos. Que é isto? repetiu ele com voz de trovão.
Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luís Negreiros esteve algum tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e dizendo em seguida à esposa:
— Vamos, de quem é aquele relógio?
Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e murmurou:
— Não sei.
Luís Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena. Não se pôde conter Luís Negreiros. Caminhou para ela, e, segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:
— Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma?
Clarinha fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado. Naquela, nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se meditasse algum desfecho trágico.
Clarinha saiu da sala.
Pouco depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.
— Onde está a senhora?
— Não sei, não, senhor.
Luís Negreiros foi procurar a mulher, achou-a numa saleta de costura, sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou a cabeça, e Luís Negreiros pôde ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros não podia ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as lágrimas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela; puxou uma cadeira e sentou-se em frente de Clarinha.
— Estou tranqüilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem suspeito nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?
— Não.
— Mas então…
— Oh! não me perguntes nada! exclamou Clarinha; ignoro como esse relógio se acha ali… Não sei de quem é… deixa-me.
— É demais! urrou Luís Negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao chão.
Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava. A situação tornava-se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais agitado, revolvendo os olhos nas órbitas, e parecendo prestes a atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca de um quarto de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa, quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando:
— Ó seu Luís! ó seu malandrim!
— Aí vem teu pai! disse Luís Negreiros; logo me pagarás.
Saiu da sala de costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da sala, fazendo viravoltas com o chapéu de sol, com grande risco das jarras e do candelabro.
— Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr. Meireles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado.
— Não, senhor, estávamos conversando…
— Conversando?… repetiu Meireles.
E acrescentou consigo:
“Estavam de arrufos… é o que há de ser”.
— Vamos justamente jantar, disse Luís Negreiros. Janta conosco?
— Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.
— Não o convidei?…
— Sim, não fazes anos amanhã?
— Ah! é verdade…
Não havia razão aparente para que, depois destas palavras ditas com um tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta vez com um tom descomunalmente alegre:
— Ah! é verdade!…
Meireles, que já ia pôr o chapéu num cabide do corredor, voltou-se espantado para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e inexplicável alegria.
— Está maluco! disse baixinho Meireles.
— Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto Meireles seguindo pelo corredor ia ter à sala de jantar.
Luís Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé, compondo os cabelos diante de um espelho:
— Obrigado, disse.
A moça olhou para ele admirada.
— Obrigado, repetiu Luís Negreiros; obrigado e perdoa-me.
Dizendo isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um gesto nobre, repeliu o afago do marido e foi para a sala de jantar.
— Tem razão! murmurou Luís Negreiros.
Daí a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa, que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que toda a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A declaração apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a terrível coisa que era um jantar requentado, — qui ne valut jamais rien.
Meireles era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e via correspondida essa afeição de parente e de amigo, tanto mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha. Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha mais de dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia ele.
A causa da longa hesitação eram os costumes pouco austeros de Luís Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro, mas os que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles confessava ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias, tornou-se um pacato cordeiro. A amizade nasceu franca entre o sogro e o genro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.
E era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do alto mar.
Clarinha amava ternamente o marido, e era a mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez do céu conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a primeira nuvem?
Durante o jantar Clarinha não disse palavra — ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom seco.
“Estão de arrufo, não há dúvida”, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da filha. “Ou a arrufada é só ela, porque ele parece-me lépido.”
Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a esposa, para a explicação última, que reconciliaria os ânimos. Clarinha não parecia desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um suspiro.
Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser como nos outros dias. Meireles sobretudo achava-se acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em casa; sua idéia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na fervura.
Quando veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.
— Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens?
Clarinha não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os ombros.
— Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem a sombra me verão.
— Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar.
O jantar acabou assim triste e aborrecido. Meireles pediu ao genro que lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo em ocasião oportuna.
Pouco depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria à casa deles, e que se havia coisa pior que um jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou atenção.
Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe numa das mãos.
— Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio; se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu me fazias.
Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a moça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A moça não disse uma nem duas; saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.
“Mas que enigma é este?” perguntava a si mesmo Luís Negreiros. “Se não era um mimo de anos, que explicação pode ter o tal relógio?”
A situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir tudo naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente no caso e assentar numa resolução que fosse decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o que se havia passado desde que chegara à casa. Pesou friamente todas as razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça, em toda aquela tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando ele a foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o movimento com que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da procedência do fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.
Luís Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses. Uma idéia má começou a enterrar-se-lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se apoderou dele em poucos instantes. Luís Negreiros era homem assomado quando a ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do gabinete e foi ter com a mulher.
Clarinha recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove horas da noite. Uma pequena lamparina alumiava escassamente o aposento. A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os olhos fitos no chão. Nem os levantou quando sentiu entrar o marido.
Houve um momento de silêncio.
Luís Negreiros foi o primeiro que falou.
— Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te pergunto desde esta tarde?
A moça não respondeu.
— Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.
A moça levantou os ombros.
Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:
— Responde, demônio, ou morres!
Clarinha soltou um grito.
— Espera! disse ela.
Luís Negreiros recuou.
— Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá: foi o que o portador me disse.
Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas:
Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.
Tua Iaiá.
Assim acabou a história do relógio de ouro.
Machado de Assis, “Todos os contos de Machado de Assis“
Clarinha não estava na alcova quando Luís Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem corresponder muito nem pouco ao ósculo com que o marido a cumprimentou logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro aberto, e os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relógio.
Luís Negreiros lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me atrevo a descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também não eram de pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís Negreiros gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido; mas gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis ou cronométricas, e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís Negreiros.
Por esse motivo, e outros que são óbvios, compreenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sobre uma cadeira, puxasse raivosamente os cabelos, batesse com o pé no chão, e lançasse o relógio e a corrente para cima da mesa. Terminada esta primeira manifestação de furor, Luís Negreiros pegou de novo nos fatais objetos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante algum tempo e refletiu sobre o caso, interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de Clarinha qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.
Foi ter com ela.
Clarinha acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com o ar indiferente e tranqüilo de quem não pensa em decifrar charadas de cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dois reluzentes punhais.
— Que tens? perguntou a moça com a voz doce e meiga que toda a gente concordava em lhe achar.
Luís Negreiros não respondeu à interrogação da mulher; olhou algum tempo para ela; depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabelos, por modo que a moça de novo lhe perguntou:
— Que tens?
Luís Negreiros parou defronte dela.
— Que é isto? disse ele tirando do bolso o fatal relógio e apresentando-lho diante dos olhos. Que é isto? repetiu ele com voz de trovão.
Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luís Negreiros esteve algum tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e dizendo em seguida à esposa:
— Vamos, de quem é aquele relógio?
Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e murmurou:
— Não sei.
Luís Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena. Não se pôde conter Luís Negreiros. Caminhou para ela, e, segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:
— Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma?
Clarinha fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado. Naquela, nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se meditasse algum desfecho trágico.
Clarinha saiu da sala.
Pouco depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.
— Onde está a senhora?
— Não sei, não, senhor.
Luís Negreiros foi procurar a mulher, achou-a numa saleta de costura, sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou a cabeça, e Luís Negreiros pôde ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros não podia ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as lágrimas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela; puxou uma cadeira e sentou-se em frente de Clarinha.
— Estou tranqüilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem suspeito nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?
— Não.
— Mas então…
— Oh! não me perguntes nada! exclamou Clarinha; ignoro como esse relógio se acha ali… Não sei de quem é… deixa-me.
— É demais! urrou Luís Negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao chão.
Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava. A situação tornava-se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais agitado, revolvendo os olhos nas órbitas, e parecendo prestes a atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca de um quarto de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa, quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando:
— Ó seu Luís! ó seu malandrim!
— Aí vem teu pai! disse Luís Negreiros; logo me pagarás.
Saiu da sala de costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da sala, fazendo viravoltas com o chapéu de sol, com grande risco das jarras e do candelabro.
— Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr. Meireles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado.
— Não, senhor, estávamos conversando…
— Conversando?… repetiu Meireles.
E acrescentou consigo:
“Estavam de arrufos… é o que há de ser”.
— Vamos justamente jantar, disse Luís Negreiros. Janta conosco?
— Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.
— Não o convidei?…
— Sim, não fazes anos amanhã?
— Ah! é verdade…
Não havia razão aparente para que, depois destas palavras ditas com um tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta vez com um tom descomunalmente alegre:
— Ah! é verdade!…
Meireles, que já ia pôr o chapéu num cabide do corredor, voltou-se espantado para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e inexplicável alegria.
— Está maluco! disse baixinho Meireles.
— Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto Meireles seguindo pelo corredor ia ter à sala de jantar.
Luís Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé, compondo os cabelos diante de um espelho:
— Obrigado, disse.
A moça olhou para ele admirada.
— Obrigado, repetiu Luís Negreiros; obrigado e perdoa-me.
Dizendo isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um gesto nobre, repeliu o afago do marido e foi para a sala de jantar.
— Tem razão! murmurou Luís Negreiros.
Daí a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa, que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que toda a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A declaração apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a terrível coisa que era um jantar requentado, — qui ne valut jamais rien.
Meireles era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e via correspondida essa afeição de parente e de amigo, tanto mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha. Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha mais de dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia ele.
A causa da longa hesitação eram os costumes pouco austeros de Luís Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro, mas os que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles confessava ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias, tornou-se um pacato cordeiro. A amizade nasceu franca entre o sogro e o genro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.
E era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do alto mar.
Clarinha amava ternamente o marido, e era a mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez do céu conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a primeira nuvem?
Durante o jantar Clarinha não disse palavra — ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom seco.
“Estão de arrufo, não há dúvida”, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da filha. “Ou a arrufada é só ela, porque ele parece-me lépido.”
Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a esposa, para a explicação última, que reconciliaria os ânimos. Clarinha não parecia desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um suspiro.
Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser como nos outros dias. Meireles sobretudo achava-se acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em casa; sua idéia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na fervura.
Quando veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.
— Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens?
Clarinha não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os ombros.
— Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem a sombra me verão.
— Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar.
O jantar acabou assim triste e aborrecido. Meireles pediu ao genro que lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo em ocasião oportuna.
Pouco depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria à casa deles, e que se havia coisa pior que um jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou atenção.
Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe numa das mãos.
— Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio; se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu me fazias.
Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a moça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A moça não disse uma nem duas; saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.
“Mas que enigma é este?” perguntava a si mesmo Luís Negreiros. “Se não era um mimo de anos, que explicação pode ter o tal relógio?”
A situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir tudo naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente no caso e assentar numa resolução que fosse decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o que se havia passado desde que chegara à casa. Pesou friamente todas as razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça, em toda aquela tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando ele a foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o movimento com que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da procedência do fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.
Luís Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses. Uma idéia má começou a enterrar-se-lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se apoderou dele em poucos instantes. Luís Negreiros era homem assomado quando a ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do gabinete e foi ter com a mulher.
Clarinha recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove horas da noite. Uma pequena lamparina alumiava escassamente o aposento. A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os olhos fitos no chão. Nem os levantou quando sentiu entrar o marido.
Houve um momento de silêncio.
Luís Negreiros foi o primeiro que falou.
— Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te pergunto desde esta tarde?
A moça não respondeu.
— Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.
A moça levantou os ombros.
Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:
— Responde, demônio, ou morres!
Clarinha soltou um grito.
— Espera! disse ela.
Luís Negreiros recuou.
— Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá: foi o que o portador me disse.
Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas:
Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.
Tua Iaiá.
Assim acabou a história do relógio de ouro.
Machado de Assis, “Todos os contos de Machado de Assis“
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