segunda-feira, março 18

Para acompanhar o café da manhã

 


Do infinito falemos

(Sátira para uso dos dela necessitados)

Se o universo é infinito,
a estupidez é-o muito mais.
Mas se o primeiro pode ser finito,
a estupidez não acaba jamais.

A estupidez tem carapaça dura
e sabe muito bem como insistir.
A estupidez quimicamente pura
fala muito antes de reflectir.

Talvez precisemos da estupidez
porque ela condimenta a vida:
se confunde francês com albanês,

torna-nos mais divertida a vida!
Tudo está em usá-la com medida,
para que se não torne atrevida!

Eugénio Lisboa

A astucia de Deus

Deus às vezes se sente incomodado com a sua própria existência. Sendo tudo, estando em tudo e a tudo envolvendo como um esplêndido lençol branco, o seu excesso de ser lhe causa certo desconforto. A sua ubiquidade lhe força a reconhecer a necessidade de limites nítidos, indispensáveis a qualquer criador, desde o humilde sonetista, até aquele que, como é o seu caso, se criou a si mesmo.

A amplidão do seu reino presumivelmente infinito e sempre ao alcance dos mais desmedidos louvores e imprecações o induz a evadir-se.

Aproveitando-se de uma distração minha, Deus se refugia dentro de mim - precisamente no lugar onde jamais conseguirei alcançá-lo.

Lêdo Ivo

O náufrago e o outro

Um vento de sal e de sol castiga Pedro Serrano, que perambula nu pelo despenhadeiro. Os alcatrazes revoam perseguindo-o. Com uma das mãos como viseira, ele tem os olhos postos no território inimigo.

Desce até a enseada e caminha pela areia. Ao chegar à linha da fronteira, mija. Não pisa a linha, mas sabe que se do lado de lá o outro estiver olhando de algum esconderijo, dará um pulo para pedir satisfações por este ato de provocação.
Mija e espera. Os pássaros gritam e fogem. Onde terá se metido? O céu é um resplendor branco, luz de cal, e a ilha uma pedra incandescente; brancas rochas, sombras brancas, espuma sobre a areia branca, um mundinho de sol e de cal. Onde terá ido parar este canalha?


Faz muito tempo que o barco de Pedro partiu-se em pedaços, naquela noite de tormenta, e os cabelos e a barba já lhe chegavam ao peito quando apareceu o outro, montado em uma madeira que a maré raivosa jogou à costa. Pedro escorreu-lhe a água dos pulmões, deu-lhe de comer e de beber e ensinou-lhe a não morrer nesta ilhota deserta, onde só crescem as rochas. Ensinou-lhe a virar as tartarugas e a degolá-las de um talho, a cortar a carne em rabanadas para secá-la ao sol e a recolher a água da chuva nos seus cascos. Ensinou-lhe a rezar pela chuva e a capturar mariscos debaixo da areia, mostrou-lhe refúgios de caranguejos e camarões e ofereceu-lhe ovos de tartaruga e as ostras que o mar trazia, grudadas nos galhos dos mangues. O outro soube por Pedro que era preciso recolher tudo que o mar entregasse aos arrecifes, para que noite e dia ardesse a fogueira, alimentada por algas secas, sargaços, ramos perdidos, estrelas-do-mar e ossos de peixe. Pedro ajudou-o a levantar um telhadinho de cascos de tartaruga, um quase nada de sombra contra o sol, na ilha sem árvores.
A primeira guerra foi a guerra da água. Pedro suspeitou que o outro roubava enquanto ele dormia, e o outro acusou-o de beber goles de animal. Quando a água esgotou-se, e se derramaram as últimas gotas disputadas a socos, não tiveram mais remédio além de beber cada um a própria urina e o sangue que arrancaram da única tartaruga que se deixou ver. Depois estenderam-se para morrer na sombra, e não lhes restava saliva para nada mais do que insultar-se baixinho.

Finalmente a chuva os salvou. O outro opinou que Pedro bem que poderia reduzir à metade o teto de sua casa, já que os cascos escasseavam tanto:

– Tens um palácio – disse – e em minha casa passo o dia torto.

– Que te fodas tu – disse Pedro – e a puta que te pariu. Se não gostares de minha ilha, dê o fora! – E com um dedo apontou o vasto mar.

Resolveram dividir a água. Desde então, há um depósito de chuva em cada ponta da ilha.

A segunda foi guerra do fogo. Se turnavam para cuidar da fogueira, para o caso de que algum navio passasse ao longe. Uma noite, estando o outro de guarda, a fogueira se apagou. Pedro despertou-o com maldições e safanões.

– Se a ilha é tua, ocupa-te dela, seu puto – disse o outro, e mostrou os dentes.
Rodaram pela areia. Quando se fartaram de golpear-se, resolveram que cada um acenderia seu próprio fogo. A faca de Pedro açoitou a pedra até arrancar-lhe chispas; e desde então há uma fogueira em cada ponta da ilha.

A terceira foi a guerra da faca. O outro não tinha com que cortar e Pedro exigia camarões frescos como pagamento cada vez que lhe emprestava a faca.

Explodiram depois a guerra da comida e a guerra dos colares de caracóis.

Quando acabou a última, que foi a pedradas, firmaram um armistício e um tratado de limites. Não houve documento, porque nesta desolação não se encontra nem uma folha de cactus para desenhar um rabisco, e além disso nenhum dos dois sabe assinar; mas traçaram uma fronteira e juraram respeitá-la por Deus e pelo rei. Jogaram para o alto uma vértebra de peixe. A Pedro coube a metade da ilha que dá para Cartagena. Ao outro, a que dá para Santiago de Cuba.

E agora, de pé frente à fronteira, Pedro morde as unhas, ergue a vista para o céu, como se buscasse chuva, e pensa: “Deve estar escondido em algum canto. Sinto seu cheiro. Porco. No meio do mar, e jamais toma banho. Prefere fritar-se em seu óleo. Por aí anda, sim, escondendo-se”.

– Ei, miserável! – chama.

Lhe respondem o trovão da maré e o alvoroço das aves e as vozes do vento.
“Ingrato”, grita, “Filho da Puta!”, grita, e grita até arrebentar a garganta, e corre e percorre a ilha de ponta a ponta, a torto e a direito, sozinho e nu na areia sem ninguém.

Eduardo Galeano, "Os Nascimentos"

O que você viu em mim

Doidinha, não sei o que você viu em mim. Eu vou até o espelho, olho, olho, e palavra que não vejo nada que possa merecer uma segunda espiada. Mesmo assim, deixo passar cinco minutos, reúno toda a autocondescendência, volto ao espelho e … vejo o que já tinha visto, este rosto rabiscado pela vida e pelo tempo, este sorriso que, quando se abre, se abre de má vontade e, nos olhos, sempre aquela disposição de captar toda a melancolia possível e conservá-la.

Não sei, doidinha, o que você pode ter visto em mim. Há de ser algo interior, que só a alma seja capaz de apreender. Só pode ser isso.

E o que eu vi em você, doidinha? Ah, não me pergunte. Eu sou um jarro velho e furado e, mesmo querendo muito, me sinto incapaz de reter, por mais de um minuto, seja o que for vertido em mim, ainda que em mim você verta esse mel, esse ouro, isso que eu, antigo, ainda me atrevo a chamar de néctar, por não ter aprendido palavra melhor, por não me haver preparado para algo nada mais doce que o néctar e a ambrosia.
Raul Drewnick

quarta-feira, março 13

Descanso da leitura

 


Cavalhadas

Chegara o dia dezesseis de julho. Nesse dia realizavam-se no Carmo grandes festividades religiosas e profanas em honra da padroeira da Vila. Salvas de arcabusaria e roqueiras anunciaram o alvorecer. Às nove horas, missa oficiada a dois coros de música. Depois, procissão. Logo era esperar pelo melhor da festa: as cavalhadas, em que se imitavam torneios entre Cristãos e Mouros, com o sabor das histórias de Carlos Magno e os doze pares da Princesa Floripes.

Numa larga praia do ribeirão, construíra-se a praça para as cavalhadas, rodeada de palanques de pau roliço, enfeitados de colchas, bandeirolas e folhagens. Às duas da tarde já todos os lugares estavam tomados pelos moradores da vila e pela muita gente que viera dos arredores convidada pela fama dos festejos. O Governador, que presidia à justas figurando o Imperador Carlos Magno, com seus doze pares de França, ocupava o palanque principal, ornamentado com especial aparato, como convinha à pessoa de tão grande senhor. No lado oposto, erguia-se o palácio do Almirante Balão, encarnado na pessoa de José Gomes Vilarinho. Violante era a bela Floripes, destinada a ser raptada por um paladino cristão.
...

As cavalhadas começavam pelo jogo das canas, exercício cavalheiresco em que se usavam adargas e lanças sem ponta, de pau frágil, que nos embates se partiam facilmente. Dezesseis cavaleiros, entre Cristãos e Mouros, vestidos os primeiros de azul e os outros de vermelhos, formavam as quadrilhas que participavam do combate simulado. Entravam às duas de cada vez, a um sinal de lenço dos padrinhos. Depois de correrem em parelhas encontradas, os cavaleiros divertiam-se a brandir as espadas, caracoleando e fazendo caprichosas evoluções com suas montarias vistosamente ajaezadas. Agrupados depois em dois bandos, um em cada metade da praça, frente a frente, tomavam as canas e disparavam a galope, tomavam as canas e disparavam a galope atirando-as ao ar um para o outro. Faziam a volta da arena e retomavam seus lugares. Ao passar o bando que galopava pelo outro, este carregava a rédea solta e atirava as canas, que se deviam esquivar sempre com a adarga.

...

Dava remate às cavalhadas o rapto da Princesa Floripes. Simulado um breve recontro entre os soldados do Almirante Balão e os paladinos de Carlos Magno, invadiam estes o alcácer do infiel e traziam de lá a peregrina donzela que achara graça aos olhos dum bravo par de França.

Eduardo Frieiro, " O mameluco Boaventura"

Viajando por mar

Nota: um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crônica, e disse-lhe desesperada: “Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?” Ele disse: “É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal.” Mas eu não quero contar minha vida para ninguém: minha vida é rica em experiências e emoções vivas, mas não pretendo jamais publicar uma autobiografia. Mas aí vão minhas recordações de viagem por mar.

Fiz na minha vida várias viagens por mar. À medida que eu for escrevendo vou me lembrando delas.

A primeira foi com menos de dois meses de idade, da Alemanha (Hamburgo) ao Recife: não sei que meio de transporte meus pais usaram para chegar da Ucrânia, onde nasci, para Hamburgo, onde meu pai procurou emprego mas, felizmente para nós todos, não achou. Nada sei sobre essa viagem de imigrantes: devíamos todos ter a cara dos imigrantes de Lasar Segall.

Outra viagem de mar de que me lembro foi na terceira classe de um navio inglês: de Recife ao Rio de Janeiro. Foi terrivelmente exciting. Eu não sabia inglês e escolhia no cardápio o que meu dedo de criança apontasse. Lembro-me de que uma vez caiu-me feijão-branco cozido, e só. Desapontada, tive que comê-lo, ai de mim. Escolha casual infeliz. Isso acontece.

Estou agora me lembrando de uma viagem que fizemos de Gênova ao Rio, “tomei um Ita no Norte”. Meu primeiro filho já tinha nascido. Espero que hoje os navios do Ita sirvam melhor; a comida era péssima, gordurosíssima, eu fazia o possível para alimentar sem perigo o meu menino de oito meses.

Veio depois a nossa viagem para Nova York, eu esperando bebê, já chorando de saudade do Brasil. Era um navio inglês, primeira classe, e fabuloso. Mas não aproveitei nada: estava triste demais. Levei uma babá de 16 anos para me ajudar. Só que as intenções dela não eram de todo a de ajudar: fascinavam-na a viagem e a vida de diplomatas. E a Avani, carregada de livros de inglês e de cabeça inteiramente virada pela sua boa sorte, nem olhava para meu menino. E o destino dessa moça é algo de fantástico: eu, que não sei cozinhar, mas tenho a invenção, ensinei-a a cozinhar a ponto dela saber fazer suflê de chocolate (um dia darei a receita, San Tiago Dantas gostou muito: vem fervendo do forno e derrama-se por cima, na hora mesmo da pessoa se servir, creme de leite gelado e batido). Bem. Essa moça foi se desenvolvendo, aprendendo coisas de mim – apesar de me invejar e de me dizer que um dia o nome dela também ia sair no jornal – aprendendo a se vestir, a ter modos, a estudar. Mas quando nasceu o meu caçula, no entanto, ela pensava que recém-nascido tomava café com leite, e se surpreendeu que eu o amamentasse. Depois peguei uma segunda ajudante, a portuguesa Fernanda, que só me deixou para unir-se a um coronel americano. Passamos seis anos e meio em Washington. Eu voltei com meus filhos e Avani ficou. Casou-se com um inglês. E está tão bem que, quando estive no Texas para fazer uma conferência, e telefonei-lhe para Washington, ela me implorou de saudade: “Venha me ver!” Eu disse: “Não tenho tempo nem dinheiro.” E ela respondeu aos gritos: “Mas eu pago, eu pago!” Meu filho menor apelidou-a de Ava, em vez de Avani. Ela, que se apaixonara pela criança, adotou o nome, e assim ficou: Ava para cá, Ava para lá.

Da minha triste viagem para Nova York guardo um diploma de passagem pelo Equador, grande festa no navio, da qual não participei: tratava-se de jogar as pessoas mesmo vestidas na piscina. Só bebi champanha gelado, ultrasseco.

Acho que foram só essas viagens por mar. O resto foi tudo de avião, que adoro: voar é bom. E gosto de me arriscar. Fiquei contentíssima ao saber que há agora um avião para Cabo Frio. Pretendo usá-lo para um fim de semana.
Clarice Lispector

terça-feira, março 12

Hora de compras

 


Felicidade de escritor


Quero que minhas obras ajudem as pessoas a se tornarem uma alma mais pura, despertando nelas o desejo de lutar pelos ideais do progresso e do humanismo da humanidade. Se em alguma medida consegui, então estou feliz
Mikhail Aleksandrovich Sholokhov

Traumas carnavalescos

Tenho uma amiga que diz que todos os nossos problemas são por causa de traumas de infância. Estou inclinado a acreditar que é verdade, porque meus problemas com o carnaval só podem ser causados pelo trauma que passei em meu primeiro baile infantil, enfrentado quando eu morava em Aracaju. Fui fantasiado de pierrô: roupa de cetim azul, borlas cor-de-rosa no lugar dos botões, um chapéu cônico com uma outra borla no topo, duas rodelas de ruge na cara, batom e pó-de-arroz. Cheguei a suspeitar que minha mãe preferia que eu tivesse nascido menina e, se pudesse, me fantasiaria de colombina. O fato é que eu não queria entrar no baile e me transformei, para o resto da vida, num carnavalesco singular, pois gosto do carnaval na teoria e sou contra na prática.

Para não falar que, além disso, sofri diversos outros traumas, alguns dos quais já na adolescência ou mesmo depois de adulto, reforçando meu sentimento de anormalidade por não entrar na folia. Fiz de tudo para entrar, mas não deu certo. Já frangote, por exemplo, combinei um truque com um amigo que também padecia do mesmo mal, companheiro de infortúnio momesco e mulheresco. Naquele tempo dos bailes, quando o sujeito ia sem companhia feminina, entrava no salão e saía pulando, às vezes com uma toalhinha pendurada no pescoço para cheirar lança-perfume. De repente, via uma moça também sozinha, estendia os braços para a frente e para o alto na direção dela e a moça vinha brincar com ele.

Moleza, decidimos nós dois, depois de passarmos umas duas horas observando o panorama da festa. Dava certo com todo mundo. Eu só não tinha a toalhinha, mas diversos destoalhados também apanhavam as moças, de maneira que não podíamos dizer que nos faltava equipamento essencial. Acompanhamos as manobras de vários apanhadores de moças e chegamos à conclusão de que a técnica não tinha segredos. Braços estendidos, sorriso nos lábios, pulinhos no ritmo da marchinha sendo tocada, ar confiante e moça no papo. E aí, depois de rondarmos o salão fazendo força para afetar familiaridade e mesmo indiferença diante do fuzuê geral, decidimos entrar na luta.

Ah, meus amigos, botem trauma de adolescente nisso. De meu posto de observação junto ao salão, podia ver algumas moças bem aproveitáveis, apesar de as melhores já estarem tomadas, que deveriam ser presas fáceis para foliões dando sopa. Fui realista e escolhi uma dentucinha de óculos. Era bem capaz de ela também ter trauma e aceitar solidariedade em meus braços estendidos. Respirei fundo, andei para lá e para cá alguns minutos, para finalmente adentrar o salão. Ela estava do outro lado, o que me dava tempo para deixar de me sentir ridículo, pulando sozinho com um sorriso que, creio eu agora, devia parecer esculpido a faca. Não envergonhei a pátria, fui em frente com decisão e coragem. Eis que finalmente, a uma distância de dois metros, encarei a dentucinha, levantei os braços e esperei estar com a mão no ombro dela em poucos instantes. Mas, assim que ela me viu em pose de combate, me lançou um olhar de que até hoje não gosto de lembrar e deu uma meia-volta fulminante. Claro, ninguém mais reparou em nada, mas eu me achei desmoralizado permanentemente, o que se confirmou com várias outras, até que desisti. Até hoje não estendo os braços para ninguém, há um limite para a rejeição, mesmo depois dos sessenta.

Mas o pior trauma foi o que acho que já contei aqui, faz algum tempo. Muita gente, contudo, não leu ou não lembra, de maneira que acho que posso contar de novo. Foi quando, depois de diversas outras tentativas, de blocos a batucadas, cedi a pressões e resolvi sair em Itaparica, na companhia de um primo meu, ambos vestidos de mulher. Era tanta minha vontade de ser carnavalesco que achei que, se me desse bem daquele jeito, ia entrar para um bloco de bonecas qualquer, destino é destino. E aí nos preparamos nós, envergando cada um uma máscara daquelas de pano e nariz vermelho que se usavam muito antigamente.

Devo confessar que, pouco tempo depois de zanzar pela ilha, pulando aqui e ali daquele jeito, achei que não tinha muita graça. Meu primo também, mas, tratando-se de um jovem com espírito prático e empreendedor, ele resolveu que, se assim não nos divertíamos, pelo menos podíamos tirar algum proveito da situação. E, claro, o primeiro que nos veio à mente foi faturar uma graninha, coisa muito comum entre os mascarados daquela época, lá na ilha. E nosso alvo era garantido: o avô de meu primo e meu tio-avô, que era rico, apesar de não muito reputado pela mão aberta, ou talvez por causa disso mesmo. De qualquer forma, o máximo de nossa ambição eram uns trocados que pelo menos recompensassem em parte nosso sacrifício em prol das tradições nacionais, nada que lhe arranhasse a fortuna.

Chegamos lá à casa dele, entramos falando com aquela vozinha fina de careta dos velhos tempos e fizemos uma porção de brincadeiras com todo mundo em casa, até chegarmos ao velho. Estava na hora de mexer com ele e, no fim, pedir um dinheirinho mixo qualquer. Ficamos junto a ele, dizendo não recordo que bobagens, até que ele me piscou um olho safado e, antes que eu pudesse fazer alguma coisa, enfiou a mão por baixo de minha saia. Pulei fora rapidamente.

— Que é isso, vô, sou eu! — exclamei, tirando a máscara.

— He-he-he — fez ele, sem sinal de arrependimento. — Quem não quer ser não tenta parecer!

E, mesmo depois de tudo esclarecido, recusou-se, alegando no momento se encontrar desprevenido, a nos dar um tostão. Carnaval, desengano.
João Ubaldo Ribeiro, "O Rei da Noite"

Ter ou não ter lido um livro

Quando tinha os meus catorze ou quinze anos, li um livro que, para sempre me marcou. Penso, às vezes, poder dizer que a minha vida teria sido diferente, se nunca tivesse lido esse livro: "Le rouge et le noir", de Stendhal, numa magnífica tradução de José Marinho. Tudo nele me fascinou: desde a criação da personagem de Madame de Rênal e toda uma paisagem de personagens de uma sociedade francesa pintada com mão de mestre, até ao estilo bem descascado, ágil, contundente, herdeiro feliz de Voltaire. E uma bela história de amor, de grande beleza trágica. Stendhal tinha horror às gorduras de muita prosa então em vigor e, para dar à sua veloz pontaria, naturalidade e sobriedade, forçava-se, todas as manhãs, a ler o Código Civil. O livro “apanhou-me” totalmente e fez, para sempre, cair a caspa que sujava a prosa que eu, por essa altura, escrevia para a gaveta. De alguma literatura gótica, eu saltava, bruscamente, para aquela pena bem afiada. A morte de Madame Rênal, uma das cenas mais sublimes de qualquer literatura, ocupa literalmente uma linha de texto, desprezando qualquer ênfase. Stendhal era um mestre para ficar, embora ignorado no seu tempo, excepto para os olhos perspicazes de Balzac.

Outro livro que muito me marcou, quase pela mesma altura, foi o romance de Sienckiewicz, "Quo vadis". Num estilo sem pathos, quase neutro, nada “interveniente”, o romancista polaco pinta-nos magistralmente as grandezas e misérias do império romano.

Uma história de amor serve de fio condutor a um desvelar de loucura e crueldade, de uma dimensão nunca vista. Os inesquecíveis diálogos entre Nero e Petrónio, em que este arrisca a vida, manipulando magistralmente o imperador, deixam marca perpétua no leitor empolgado. A morte de Petrónio é um cúmulo de beleza discreta e um anúncio de um fim de mundo. Neste romance, que se lê com sofreguidão, o adolescente leitor depara-se, pela primeira vez, com a condição humana nos seus limites de crueldade, mas também de desenfastiada elegância. Não é possível ficar imune a esta tempestade que varreu o mundo.

Outro livro, de entre os vários que me fazem pensar que eu não seria o mesmo se os não tivesse lido, está a novela de Tolstoi, "A morte de van Ilitch". Num texto de não muitas páginas, o grande ficcionista russo mergulha intrepidamente os seus instrumentos de sondagem, num dos momentos mais dilacerantes da vida humana: aquele em que o remorso por uma vida mal vivida se alia à aproximação da morte, que vai lentamente debilitando um corpo indefeso. Numa cena que é o cúmulo da observação e da arte de escrever, Tolstoi descreve-nos o pobre juiz, devorado por um cancro, abraçado ao mujik que lhe trata da higiene, como se desejando que a forte energia que dele dimana se lhe comunicasse por osmose: literalmente, um filho nos braços da mãe, que o aleita e lhe dá segurança. Esta novela de Tolstoi, apesar da sua pequena dimensão, não desmerece, na minha opinião, das grandes construções romanescas que lhe deram fama.

Há livros que admiramos, mas há outros que nos transformam profundamente. Estes três não foram os únicos que me deixaram dedada profunda. Há outros, não muitos, de que falarei noutro dia, se para isso me sentir inclinado.

Eugénio Lisboa

sábado, março 9

Barco da paz

 


O código de consciência

Se vocês tiverem o hábito de ler, vão ingressar em um mundo tão fascinante que, de imediato, os fará se tornarem criaturas sedutoras. Porque a leitura também nos dá uma condição erótica. Com as palavras na mão, você se torna uma pessoa sedutora. Uma pessoa afásica tem que ter um rosto belíssimo para poder seduzir. Já um feinho, ou uma feinha, se tiver o dom da palavra, se for capaz de imantar plateias, pessoas ou amores com a palavra… Não é forçoso dizer que a leitura nos obriga a abrir os olhos. Com ela, você vê o que não tinha visto até então, você se torna muito mais crítico. No entanto, através da leitura, você vai criando o seu conceito, o seu código de consciência.
Nélida Piñon

Homem olhando o mar

Ela carregava a pasta contra o peito e caminhava com estudada displicência1– o que, decerto modo, disfarçava a deselegância do uniforme... Deu uma corridinha para atravessar a rua e depois secompenetrou2, tentando fazer-se adulta. Logo se distraía, de vitrine em vitrine, com seu próprio corpo que passava refletido no vidro – às vezes estacando3paraolhar um vestido, uma bolsa, um sapato. "Bárbaro!", murmurava. Na esquina se deteve junto à carrocinha de sorvete:– De chocolate! A mãe era capaz de dizer que não ficava bem uma moça de treze anos tomando sorvete pela rua afora. Ainda mais nesse passinho, saltitante, evitando as listras pretas da calçada, só pisando nas brancas. Pouco se importava: uma coisa que não ficava bem, ela gostava de fazer. Por exemplo: tirar o sapato ali mesmo e andar descalça, dava vontade. Outro exemplo: matar a última aula, pois não era isso mesmo? Sorvete acabado, ficou pensando se agora não seria o caso de comprar um saco de pipocas. Enquanto decidia, olhava os cartazes de cinema. Por um instantinho teve a tentação de entrar. Isto é, se o dinheiro desse. Isto é, se desse tempo. Isto é, se não tivesse visto aquele filme.–  Amanhã vou pedir ao papai – afirmou, como se falasse para o próprio sapatinho branco na vitrine logo adiante. "Bárbaro também". O pai, naquele instante na cidade, trabalhando no escritório. O que eu estou precisando é de tomar juízo, concluiu. Mas, francamente: só a última aula. Ainda mais numa tarde tão bonita como aquela. Virou a esquina e seguiu em direção ao mar. Omar... Ondas que se quebravam lá adiante, espumando verde. Ao longe, cruzando a barra, um navio branco. O azul do céu sem uma nuvem, a areia dourada. Foi andando devagar ao longo da praia, passo a passo, reconciliada com o mundo, leve, distraída, olhando o mar. De repente estacou, surpresa. Num dos bancos, logo adiante, um homem também olhando o mar. Um homem alto como seu pai, meio curvado como seu pai, olhando o mar. Mas àquela hora, sentado sozinho num banco de praia, paletó largado ao colo, olhando o mar? Virou rapidamente o rosto, porque ele se movera e já podia tê-la visto. Deu-lhe as costas e atravessou a rua, aturdida4com a descoberta: ele também matava aula para ficar olhando o mar. Antes de desaparecer na esquina, arriscou ainda um olhar furtivo5para confirmar: lá estava ele. Teve a impressão de que agora ele é que virava o rosto para não ser reconhecido. Por via das dúvidas, foi logo para casa. Já era tempo mesmo. Chegou à hora de sempre. A noite, ele também chegou à hora de sempre. E, durante o jantar, a uma pergunta da mulher, enfrentou toda a família com o costumeiro sorriso de cansaço. Olhou a filha meio ressabiado, mas ela já lhe devolvia o olhar, com ternura. Uma ternura de cúmplice.
Fernando Sabino, "A vitória da infância"

Romance que Gabriel Márquez quis destruir em vida é lançado 10 anos após sua morte

É um romance curto, de 122 páginas, que acompanha Ana Magdalena Bach, uma mulher de meia-idade que está feliz no casamento de 27 anos — e não tem motivos para querer fugir da vida que construiu. Porém, todo mês de agosto ela viaja para visitar o túmulo da mãe em uma ilha, e por uma noite ela se torna uma pessoa diferente.

Na quarta-feira, a obra intitulada "Em agosto nos vemos" (Record) chegou às livrarias de todo o mundo.

Gabriel García Márquez trabalhou longa e intensamente neste romance, mas o processo foi interrompido pela deterioração de sua memória. Nos anos anteriores à sua morte, ele próprio o descartou.

“Este livro não funciona. Temos que destruí-lo”, ele disse.

Mas seus filhos Rodrigo e Gonzalo decidiram resgatá-lo do arquivo da Universidade do Texas, em Austin, e publicá-lo às vésperas do aniversário de dez anos da morte do escritor.


“Minha teoria é que quando ele disse que não funcionava, ele havia perdido a capacidade de julgá-lo. Não é tão polido quanto seus outros romances, mas também não é uma confusão incompreensível. Acho que foi ele quem não entendeu mais nada”, afirmou Rodrigo García à imprensa.

Cristóbal Pera, diretor editorial da Planeta USA, trabalhou com García Márquez ainda em vida na obra — e também foi o editor da versão final do livro. Pera conta os bastidores de Em agosto nos vemos, que muitos classificam como o acontecimento literário do ano.

Como você começou a trabalhar em Em agosto nos vemos, e como foi sua relação com García Márquez nesse processo?

Cristóbal Pera - Fui editor de García Márquez desde 2001, quando colaborei com a edição de suas memórias, Viver para Contar. Começou aí uma relação de editor-autor à distância, que mais tarde, quando fui ao México, em 2006, retomamos pessoalmente. Tive um relacionamento contínuo com ele na edição de Eu não vim fazer um discurso, livro que reúne todos os seus discursos e foi publicado em 2010.

E, finalmente, como menciono na nota do editor que consta do livro, a agente de García Márquez, Carmen Balcells, me pediu em 2010 para encorajá-lo a terminar seu romance Em agosto nos vemos, do qual eu não tinha notícias.

Então, quando voltei ao México, comentei isso com ele. Ele já havia terminado um primeiro rascunho em 2004.

Naquela época, 2010 e 2011, ele já estava começando a perder um pouco a memória, e não estava trabalhando realmente no romance. Mas estava dedicado a corrigir uma palavra, uma frase, para melhorá-lo, e aí brilhava a sua genialidade, nessas pequenas correções.

Pude ler três ou quatro capítulos do romance em voz alta com ele na minha frente, e adorei. Vi que o tema também era inédito para ele, com uma protagonista mulher, que não se havia visto em sua narrativa.

E ele continuou tomando notas em uma quinta versão, que tinha entre as versões que vinha fazendo, até que finalmente foi desistindo à medida que sua doença progredia.

O que aconteceu com o romance após a morte de García Márquez em 2014?.

Após sua morte, a família decidiu que não era o momento de publicar aquele romance, que ele também havia dito que não queria publicar em seus últimos anos de vida.

Todos os artigos de García Márquez, incluindo este manuscrito, foram enviados à Universidade do Texas, em Austin, para fazer parte do grande arquivo de García Márquez. Este romance não estava inicialmente disponível ao público, mas algumas pessoas puderam vê-lo.

Depois de saber que algumas pessoas haviam tido acesso ao manuscrito e haviam dito que era muito bom e que deveria ser publicado, os filhos de García Márquez finalmente decidiram não dar ouvidos ao pai e publicá-lo. E foi aí que me pediram para trabalhar na edição final do romance.

BBC News Mundo - Além de descartá-lo nos últimos anos, que relação García Márquez havia tido com este romance? Que visão ele tinha do livro?

'Este romance fazia parte de um projeto narrativo', afirma o editor de García Márquez

Em uma entrevista que concede em Madri, ao ler em público o primeiro capítulo deste romance, ele diz ao jornalista que está escrevendo uma série de romances curtos com o tema geral do amor na meia-idade. Do amor e outros demônios fazia parte disso.

Então, quando voltou para casa em 2002, depois de tratar um câncer em Los Angeles, ele retoma o manuscrito do que mais tarde se tornaria Memória de Minhas Putas Tristes, termina em um ano e publica o livro.

E depois ele dedica um ano inteiro a trabalhar no rascunho que já tinha de Em agosto nos vemos.

Ele envia um manuscrito para a agência Balcells, e essa é a quinta versão que ele abandona, abandona no sentido de deixar descansar, como disse à sua secretária Mónica Alonso. A secretária de García Márquez é fundamental. Era ela quem o ajudava e quem guardava os manuscritos.

Em seus últimos anos, quando sua memória falhava, e ele não reconhecia muitas coisas, mencionou diversas vezes que não queria publicar o romance, que não estava pronto, etc.

Mas, enfim, como dizem os filhos na apresentação do livro, o romance não estava polido, mas estava finalizado, os leitores vão ver. Não precisei acrescentar nenhuma palavra, é claro. Não preciso nem dizer que não acrescentei nada.

Que detalhes você pode contar sobre o processo de edição do livro? Que desafios você encontrou?

O maior desafio foi o respeito absoluto pela obra de García Márquez. É uma tarefa de imensa responsabilidade.

Felizmente tive a oportunidade de trabalhar bastante lado a lado com ele, então conhecia muito bem sua obra, já havia trabalhado com ele em correções, sabia como ele trabalhava, e isso me ajudou.

O mais importante foi ler o manuscrito completo e ver que a história estava ali completa, acabada. Não havia nada a fazer ali para terminar, nem era preciso acrescentar uma frase ou um final, estava tudo lá.

Fiz o trabalho de editor com o manuscrito que estava em documento de Word, e a quinta versão que ele deixou impressa com muitas anotações feitas a mão nas margens, com alterações, com algo. É aí em que baseio a edição para chegar ao texto final.

Bastava seguir as pistas que ele deixou para tomar a decisão de, por exemplo, deletar uma frase que estava riscada.

E depois, o que tive que fazer foram algumas mudanças que surgiram a partir da verificação de dados, como nomes de autores mencionados, o trabalho normal de um editor, e algumas questões de coerência do próprio texto.

O que você quer dizer com questões de coerência?

Há alguns exemplos que menciono na nota do editor. No romance, a protagonista termina o último capítulo com 50 anos — então, fazendo as contas, no primeiro capítulo ela tem 46 anos.

A questão é que, no primeiro capítulo, ele descreve a protagonista como uma mulher que está perto da terceira idade, e ele mesmo marca essa frase e coloca nela um ponto de interrogação. Obviamente, era de uma versão inicial, e ele percebe que, claro, uma mulher de 46 anos não chega perto do que entendemos por terceira idade.

Ali, como editor, simplesmente interpretando aquela marcação, retiro essa referência à terceira idade, e o leitor não se confunde, porque ela é uma mulher de 46 anos.

Outro exemplo é que a protagonista conhece um homem no primeiro capítulo, e no último capítulo, anos depois, ela o reencontra em uma rua de uma cidade litorânea, e a princípio não o reconhece porque ele estava de bigode, e ele não usava (bigode) quando o conheceu. E, no primeiro capítulo, o homem aparece de bigode.

São questões puramente de coerência narrativa que ele teria visto em uma revisão final. Assim, a menção ao bigode teve que ser retirada daquele primeiro capítulo para que a referência final fizesse sentido.

As minhas intervenções foram essas: seguir todas as suas marcações e simplesmente controlar a coerência narrativa das idades, da cronologia, dos nomes, etc., etc.

O que este livro representa na literatura de García Márquez, e o que revela sobre o final de sua carreira?

Os leitores que vão julgar Em agosto nos vemos. Acredito que este romance encerra toda a sua narrativa com chave de ouro. E acho que no fundo ele estava ciente disso.

É um romance com uma protagonista mulher, nunca havia tido uma em seus romances. E as mulheres são muito importantes em seus romances, desde Cem Anos de Solidão, e em todas as suas histórias, mas nunca tiveram um papel de protagonista como o de Ana Magdalena Bach, que é uma mulher que decide explorar sua sexualidade e sua liberdade.

Isso gera conflitos nela, mas ela continua nesse caminho, embora seja uma mulher que em teoria é feliz, e não teria razões objetivas para fazer isso.

Por isso, é um romance que seu próprio filho Rodrigo descreveu como feminista. Acho que este romance reorganiza toda a obra de García Márquez, e principalmente o papel da mulher nela, que depois deste romance deve ser reconsiderado. Acho que é por isso que é tão importante.

Depois, no seu estilo, na forma como é contado, se passa em um lugar e em uma época não identificados, provavelmente nos anos 1980 ou 1990, na costa da Colômbia, em uma ilha, mas não se sabe realmente. Ele não quer deixar marcas rígidas de onde é, o que é uma novidade.

É então uma obra que faz jus às demais...

Sem dúvida. Mas o que eu digo não vale nada, porque os leitores a partir de agora vão poder julgar.

Só posso voltar ao momento em que li pela primeira vez vários capítulos do romance em voz alta junto a ele. Naquele momento, o que pensei foi: Espero que um dia todos os leitores de García Márquez possam desfrutar da obra-prima que tive o privilégio de ler pela primeira vez.

Santiago Vanegas

sexta-feira, março 8

Dia é sempre delas: mulher e leitura

 


Rondó de mulher só

Estou só, quer dizer, tenho ódio ao amor que terei pelo desconhecido que está a caminho, um homem cujo rosto e cuja voz desconheço.

Sempre estive duramente acorrentada a essa fatalidade, amor. Muito antes que o homem surja em nossa vida, sentimos fisicamente que somos servas de uma doação infinita de corpo e alma.

O homem é apenas o copo que recebe o nosso veneno, o nosso conteúdo de amor. Não é por isso que o homem me atemoriza, quando aqui estou outra vez, só, em meu quarto: o que me arrepia de temor é este amor invisível e brutal como um príncipe.

Quando se fala em mulher livre, estremeço. Livre como o bêbado que repete o mesmo caminho de sua fulgurante agonia.

A uma mulher não se pergunta: que farás agora da tua liberdade? A nossa interrogação é uma só e muito mais perturbadora: que farei agora do meu amor? Que farei deste amor informe como a nuvem e pesado como a pedra? Que farei deste amor que me esvazia e vai remoendo a cor e o sentido das coisas como um ácido? É terrível o horror de amar sem amor como as feras enjauladas.

É quando o homem desaparece de minha vida que sinto a selvageria do amor feminino. Somos todas selvagens: são inúteis as fantasias que vestimos para o grande baile. Selvagem era a romana que ficava em casa e tecia; selvagens eram as mulheres do harém, as mais depravadas e as mais pudicas; selvagem, furiosamente selvagem, foi a mulher na sombra da Idade Média, na sua mordaça de castidade; mesmo as santas - e Santa Teresa de Ávila foi a mais feminina de todas - fizeram da pureza e do amor divino um ato de ferocidade, como a pantera que salta inocente sobre a gazela. E selvagem sou eu sob a aparência sadia do biquíni, olhando a mecânica erótica de olhos abertos, instruída e elucidada. Pois não é na voluntariedade do sexo que está a selvageria da mulher, mas em nosso amor profundo e incontrolável como loucura. O sexo é simples: é a certeza de que existe um ponto de partida. Mas o amor é complicado: a incerteza sobre um ponto de chegada.

Aqui estou, só no meu quarto, sem amor, como um espelho que aguarda o retorno da imagem humana. O resto em torno é incompreensível. O homem sem rosto, sem voz, sem pensamento, está a caminho. Estou colocada nesse caminho como uma armadilha infalível. Só que a presa não é ele - o homem que se aproxima - mas sou eu mesma, o meu amor, a minha alma. Sou eu mesma, a mulher, a vítima das minhas armadilhas. Sou sempre eu mesma que me aprisiono quando me faço a mulher que espera um homem, o homem. Caímos sempre em nossas armadilhas. Até as prostitutas falham nos seus propósitos, incapazes de impedir que o comércio se deixe corromper pelo amor. Quantas mulheres traçaram seus esquemas com fria e bela isenção e acabaram penando de amor pelo velhote que esperavam depenar. Somos irremediavelmente líquidas e tomamos as formas das vasilhas que nos contêm. O pior agora é que o vaso está a caminho e não sei se é taça de cristal, cântaro clássico, xícara singela, canecão de cerveja. Qualquer que seja a sua forma, depois de algum tempo serei derramada no chão. Os vasos têm muitas formas e andam todos eles à procura de uma bebida lendária.

Li num autor (um pouco menos idiota do que os outros, quando falam sobre nós) que o drama da mulher é ter de adaptar-se às teorias que os homens criam sobre ela. Certo. Quando a mulher neurótica por todos os poros acaba no divã do analista, aconteceu simplesmente o seguinte: ela se perdeu e não soube como ser diante do homem; a figura que deveria ter assumido se fez imprecisa.

Para esse escritor, desde que existem homens no mundo, há inúmeras teorias masculinas sobre a mulher ideal. Certo. A matrona foi inventada de acordo com as idéias de propriedade dos romanos. Como a mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita, muito docilmente a mulher de César passou a comportar-se acima de qualquer suspeita. Os Dantes queriam Beatrizes castas e intocáveis, e as Beatrizes castas e intocáveis surgiram em horda. A Renascença descobriu a mulher culta, e as renascentistas moderninhas meteram a cara nos irrespiráveis alfarrábios. O romancista do século passado inventou a mulherzinha infantil, e a mulherzinha infantil veio logo pipilando.

O tipos vão sendo criados indefinidamente. Médicos produzem enfermeiras eficientes e incisivas como instrumentos. Homens de negócios produzem secretárias capazes e discretas. As prostitutas correspondem ao padrão secreto de muitos homens. Assim somos. Indiquem-nos o modelo, que o seguiremos à risca. Querem uma esposa amantíssima - seremos a esposa amantíssima. Se a moda é mulher sexy, por que não serei a mulher sexy? Cada uma de nós pode satisfazer qualquer especificação do mercado masculino.

Seremos umas bobocas? Não. Os homens são uns bobocas. O homem é que insiste em ver em cada uma de nós - não a mulher, a mulher em estado puro ou selvagem, um ser humano do sexo feminino - o diabo, a vagabunda, a lasciva, o anjo, a companheira, a simpática, a inteligente, o busto, o sexo, a perna, a esportista... Por que exige de nós todos os papéis, menos o papel de mulher? Por que não descobre, depois de tanto tempo, que somos simplesmente seres humanos carregados de eletricidade feminina?
Paulo Mendes Campos, "O amor acaba: crônicas líricas e existenciais"

Poesia não morde

Você não gosta de poesia? Crê que a poesia de hoje é difícil de entender, tem preguiça de percorrer os labirintos de um poema atual? Ué, sabe que eu também fico às vezes nessa sinuca de bico, sem saber que rumo tomar? A culpa não é da poesia, sempre necessária e reveladora, mas dos modismos e achismos e idiotismos adotados por alguns poetas. O resultado costuma ser, de fato, um aranzel, um desencontro de palavras, uma verborragia desprovida de sentido. E de talento.

Desconfio de que, com frequência, nem o próprio poeta saiba o que tenha dito, se é que tinha algo a dizer. A poesia é a arte do inútil, assim já a definiram. Ou a arte de dizer o indizível. Portanto precisa de arte. Arte está em sua raiz. Um poeta certa vez me confessou que desejava apenas fazer ruído com seus versos. Sim, ruído, nada mais. Compôs um zunido sem fim, sem palavras. Se esse era o objetivo, por que não gravou a barulheira do centro da cidade às seis da tarde? Teria em mãos uma epopeia. De graça.

Alguns desses embusteiros recebem louvações da mídia, que tenta nos forçar a concluir que os incensados são o ideal da arte, o suprassumo das musas, o modelo do futuro. Se saiu na mídia, é bom. Será? Somos enganados e ainda ficamos com a tristeza de desgostar de poesia, não é mesmo?

Vamos separar as coisas. Quem faz poesia assim é uma minoria. Existem grandes poetas, novos e antigos, revolucionários e conservadores, para todos os gostos, desde os que fazem grandes voos verbais aos gênios que sintetizam enciclopédias em meia dúzia de palavras. Esses não passarão feito passarinho.

Enquanto romancista, invejo a capacidade dos poetas de dizer tanto em tão pouco. Eles me tocam fundo, revelam passagens secretas entre nossos abismos interiores, tiram o peso do corpo e da alma, abrem avenidas para o pensamento, questionam ideias, expõem conflitos, revolvem nossas entranhas, oferecem momentos de graça, vislumbram o paraíso. O mundo é feito de poesia. O bom poeta sabe disso e a garimpa onde menos esperamos. Arranca-a da pedra, do caminho, do asfalto, da vida. O resultado é puro deleite, puro fascínio, pura poesia. Poesia não morde. Às vezes dói. Mas sempre encanta.

Veraneio

Morávamos no continente, onde a cidade era dividida pelo rio em duas partes. Da balaustrada do jardim avistava-se longe morros e matas, o verde intenso que se emendava com o azul descaindo do céu. O litoral era como se estivesse em outro país, distante do continente. Lá existia o mar que se desmanchava na praia, navio que trafegava na barra, entrava pelo canal para atracar no porto, avião que voava como pássaro de ferro em busca de outros longes.

O menino de minha época, morador do continente, o que mais queria era que chegassem as férias de dezembro, a partir de janeiro iria com os pais e irmãos fazer o veraneio no litoral, quando teria a oportunidade de navegar por mares nunca dantes navegados. Ultrapassaria os perigos do mar, pescaria os peixes maiores, apostaria corrida com o vento ligeiro pela praia e seria sempre o vencedor em cada corrida.


Sorridente, de calção e peito nu, beberia água de coco para amenizar o calor que fazia escorrer o suor, à noite dormiria com as estrelas pisca-piscando nos olhos. O sono seria embalado pela canção das ondas, que chegavam sonoras com seus leões de jubas alvas bramindo na praia.

Embarcávamos em seco na marinete, um ônibus de cadeira dura, que seguia aos solavancos na estrada de barro, o motorista e os passageiros botavam fogo pelas narinas, cuspiam cobras e lagartos. Quando a marinete alcançava a entrada do litoral, depois da ponte do fundão, um cheiro de maresia trazida pelo vento de amanhecer arrancava um sorriso feliz do menino. A marinete terminava a viagem no local onde havia uma amendoeira frondosa, o tronco grosso com a casca enrugada pelos anos.

Os carregadores aguardavam o desembarque dos passageiros para levar suas bagagens até o porto, dali iriam embarcar para o Pontal ou Olivença, conforme o local que tivessem escolhido para fazer o veraneio. Muitos veranistas escolhiam o Pontal dos Ilhéus, onde havia energia elétrica. Com meus tios e primos eu iria conhecer Olivença, um povoado que havia sido aldeia dos indígenas tupinambás na época do Brasil colonial.

A viagem agora para o Pontal seria feita por lancha. Quando a maré estava alta, a embarcação jogava de um lado para o outro, parecendo que iria virar a qualquer momento. O menino e os primos tinham medo, pediam calados a Deus que terminasse logo aquele trecho perigoso da viagem e finalmente chegassem ao desembarque no Pontal dos Ilhéus. Ufa! No local de chegada, no Pontal dos Ilhéus, as ondas enraivadas tinham ficado felizmente para trás, subindo e descendo no canal por onde os navios de calado menor chegavam para atracar no porto.

Do Pontal para Olivença, o transporte que levava os veranistas era um caminhão. A maior parte do percurso seria feito pela praia, se a maré estivesse seca. Nas proximidades da chegada ao lugarejo, pegava-se um trecho de estrada de barro, por entre coqueiros, o caminhão velho passava com cuidado no pontilhão feito com tronco de árvore.

Veraneio em Olivença levava vantagem em relação ao que ocorria no Pontal. Lá havia a fonte de Tororomba, uma piscina natural de água térmica, procurada pelos veranistas depois do banho de mar. Mas era na praia de areia alva, onde brincava no jogo de bola, mergulhava nas ondas antes que elas batessem contra o peito, pescava siris e peixes pequenos com a rede, que o menino e os seus primos mais se deliciavam com a vida em estado de graça, em ambiente marinho salpicado por ventos brandos e marés festivas.

Ficava com a pele tostada pelo sol, que na manhã cheia de brilho irradiava seus raios dourados como se fosse uma flor gigantesca. Resvalava na sua cor de ouro sobre o verde das ondas. Do céu descaía um azul translúcido, que inventava milhares de espelhos nas ondas onde o sol admirava sua beleza permanente de verão.

Passaram verões, verões passaram. Quem diria que um dia fossem construir duas pontes para fazer a ligação entre Ilhéus e o Pontal. A mais nova estava servindo de cartão postal e orgulho dos que transitavam nela. Entre o Pontal e Olivença, a estrada foi asfaltada. Hotéis, pousadas, bares, restaurantes, cabanas de praia. A paisagem agora é outra, modificada na faixa litorânea, rola na arquitetura moderna e nas cabanas com gente vinda de fora.

Nessa manhã de sol esplêndido, caminho apenas com o vento, soprando nos meus cabelos grisalhos a canção que aquele menino apreciava, falava de verdes e azuis rolando pelas ondas. Quem dera fosse sempre o tempo com aquele som no qual os sonhos espumavam na praia de areia branca para encher de rumores o mundo salpicado de encanto em cada veraneio.

Aqueles rumores não disseram que de outras ondas ficaria sabendo o menino quando rolasse nas ilhas do adulto. Nesse mar de amanhecer áspero às vezes com sargaço. De tanto mergulhar e tentar se livrar de ondas perigosas não tinha como não saber do sal espalhado pelo vento em outra canção diferente.